Sexta-feira, 13 de Julho de 2007
O Governo e a Igreja
O ataque à religião a partir do Estado apenas serve para fazer despontar fundamentalismos religiosos.
A imprensa tem difundido o mal-estar actualmente existente entre a hierarquia da Igreja Católica e o Governo. A Igreja andaria insatisfeita com o Governo numa série de questões: o financiamento das IPSS católicas, o pagamento de impostos pelos sacerdotes, a nomeação de capelães para hospitais e serviços prisionais, a proposta de lei sobre a titularidade dos orgãos de comunicação social, etc. Mas há uma outra questão que não é agora mencionada pela imprensa e que acaba por ser mais importante do que aquelas. No referendo sobre a despenalização do aborto a Igreja estava do lado contrário ao do Governo. Foi esse o ponto de ruptura.
Recorde-se que, no rescaldo do referendo, personalidades da área do Governo afirmaram que se estava perante a maior derrota da Igreja desde a Primeira República. Outros, aparentemente mais cuidadosos, limitaram-se a dizer que a vitória no referendo significava um grande impulso de modernização cultural da sociedade portuguesa, remetendo assim os derrotados para uma obscura pré-modernidade. A hierarquia católica tomou nota destes comentários e ficou preocupada. A partir daí só se poderia esperar um crescendo de desconfiança.
Em boa verdade, a desconfiança sempre existiu entre a Igreja e o partido que sustenta o Governo. O partido da Igreja portuguesa é o PSD e não o PS. Este alberga uma visão laicista, directamente influenciada pela tradição do republicanismo português. Como toda a gente sabe, a nossa Primeira República foi anti-católica. Afonso Costa pretenderia acabar com o catolicismo em Portugal no prazo de duas gerações e agiu em conformidade. Ora, uma boa parte do PS é herdeira, de uma forma mais ou menos assumida, deste modo de pensar. Daí a importância que tem ainda hoje, para muitos socialistas, a ideia de um Estado laico como a instância de socialização dominante. O papel que eles reservam ao Estado visa conter ou reduzir os canais habituais de penetração da Igreja na sociedade: escolas, hospitais, instituições de caridade, orgãos de comunicação social, etc.
No entanto, este laicismo republicano-socialista assenta em bases muito frágeis. Ele compreendia-se a luz de teorias típicas do século XIX e há muito desacreditadas, como o saint-simonismo, o positivismo comtiano, ou o marxismo. Todas estas teorias consideravam o cristianismo como algo a ser superado e aspiravam a transformar-se em religiões seculares de substituição: a Igreja Saint-Simoniana, a Igreja Positivista, o Partido dos Trabalhadores Essas religiões seculares tinham a sua organização hierárquica, os seus “sacerdotes”, os seus “livros sagrados”, as suas “liturgias”, e por aí adiante. A religião tradicional deveria ser afastada da esfera pública e, como tal, tornada invisível até ao seu desaparecimento.
Como sabemos, a religião tradicional não desapareceu e os seus sucedâneos laicos acabaram por durar bem menos tempo do que as religiões que pretendiam substituir. O ataque à religião a partir do Estado apenas serve para fazer despontar fundamentalismos religiosos. Fenómenos desse tipo acontecem hoje na Europa em países que foram comunistas, mas não naqueles em que o Estado teve uma atitude de tolerância ou mesmo de colaboração com a Igreja. Há um paradoxo que devia fazer tremer o laicista mais empedernido: os países que têm as sociedades mais secularizadas são aqueles em que o Estado não só não hostilizou a religião tradicional como a tornou religião de Estado: a Inglaterra e os países nórdicos, como a Dinamarca ou a Noruega.
Numa sociedade livre, na qual estão garantidas, na lei e na prática, as liberdades dos cidadãos, o Estado e os seus agentes não têm qualquer razão para hostilizar a religião em geral e muito menos a Igreja Católica. Mas a boa relação entre a Igreja e o Estado não deve ser baseada num raciocínio meramente estratégico. Trata-se de respeitar as escolhas individuais. A identificação com a Igreja Católica é uma parte importante da vida de muitos portugueses e isso não os impede – antes pelo contrário – de ser bons cidadãos num Estado liberal-democrático. Por isso o Governo deve ser firme na construção de boas relações com a Igreja, ainda que contrariando a corrente laicista do PS.