Sexta-feira, 13 de Julho de 2007
HÁBITOS DE RICO E A ARTE DE FURTAR
A defesa do consumidor justifica hoje miríades de leis, regulamentos e prescrições. Como todos os exageros, o resultado é em grande medida precisamente o oposto, oprimindo o cidadão para beneficiar alguns interesses instalados.

Desde as regras de construção de edifícios às imposições do Código da Estrada, das embalagens de alimentos às características dos brinquedos e aos limites ao tabaco, a nossa vida desenrola-se sob uma rede intrincada que alegadamente nos protege a saúde e bem-estar. Se a isso juntarmos os meritórios propósitos de promover o ambiente, a eficácia energética, a democracia, a cultura nacional e tantos outros fins, vê-se que estamos bem defendidos.

Em geral esses preceitos são sensatos e convenientes (embora também os haja tolos e ridículos) e, se constituíssem recomendações ou conselhos, seriam contributos preciosos para o tal consumidor. Mas quando se tornam obrigatórios por lei ou directiva europeia, puníveis por pesadas multas e coimas, distorcem e danificam aquilo que pretendem promover. Na realidade, muitas dessas exigências são formas de encarecer os produtos, prejudicando aqueles que dizem beneficiar. Sobrevivemos séculos sem requisitos hoje indispensáveis.

Por detrás das imposições há uma falácia perversa. Elas estão ligadas a preocupações que, em geral, os ricos adoptam voluntariamente, porque têm possibilidades para isso. Forçando-as a todos, a lei diz beneficiar os pobres, a quem garante produtos de qualidade. Mas essas exigêncas pagam-se. As coisas passam a ser boas, legais e inacessíveis. Impor hábitos de rico torna todos mais pobres.

Houve tempos em que comprar um carro era para muitos um sonho irrealista. Agora o rendimento subiu e o preço desceu. Mas também explodiram as despesas adicionais impostas ao automobilista: cintos de segurança, coletes reflectores, seguros obrigatórios, cadeirinhas para crianças, inspecções periódicas, gasolina sem chumbo, etc, etc. Para os ricos, que sempre se esmeram nos extras do automóvel, isso nada traz de novo. Para muitos pobres estas coisas mantêm o carro um sonho irrealista (ou uma actividade fora da lei).

Cada vez que entra num restaurante, o cliente assume um grande risco. A qualidade, higiene, segurança da refeição estão confiadas ao profissionalismo e boa-fé do estabelecimento. A única garantia sólida do consumidor está no interesse do restaurante em ser bom, porque disso depende a sua rentabilidade e sobrevivência. Quando o Estado impõe limitações - muitas tolas, como a proibição de galheteiros ou colheres de pau - apenas contribui para encarecer a refeição, sem adicionar nada de significativo à protecção do consumidor, que continua totalmente nas mãos do cozinheiro.

Se essas leis transformam bons conselhos em custos insuportáveis para os pobres, por que razão são criadas? A resposta, além da fúria controladora dos serviços, está no interesse daqueles que realmente beneficiam com elas. Porque quem ganha com a defesa do consumidor é o produtor.

Para as fábricas de embalagens alimentares, exaustores de fumo, livros escolares, caixilharias de vidros duplos, revestimentos climatizados e tantos outros, a imposição legal dos seus produtos é um grande negócio. Garagens de inspecção, companhias de seguros, médicos de trabalho, estudos de impacto ambiental, licenciamentos camarários e ministeriais, enchem os bolsos à sombra dos regulamentos, atrasando e penalizando a vida aos cidadãos que dizem defender. E depois ainda vêm advogados e organizações de consumidores, que vivem de tratar todas estas obrigações.

Há muitos milénios os bandoleiros da estrada viviam de saquear mercadores. Quando os nobres legalizavam a prática, através de taxas e portagens, a capa de legitimidade mantinha a rapina. Hoje as leis de protecção dos cidadãos constituem em muitos casos uma forma serena de pilhagem equivalente ao velhos assaltos. Já no século XVII o clássico português A Arte de Furtar ensinava que: "os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões" (c. IV).


publicado por psylva às 14:33
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Outubro 2007
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Semear futuras crises

As ideias de Luís Filipe ...

Tufão imobiliário

Ordem, custos e esbanjame...

Política, ideias e pessoa...

HÁBITOS DE RICO E A ARTE ...

As reformas da Chrysler

O que resta da esquerda?

O Governo e a Igreja

Um estado menos “keynesia...

arquivos

Outubro 2007

Julho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

blogs SAPO
subscrever feeds