Quinta-feira, 13 de Abril de 2006
Neo-proteccionismo

Muitas das medidas de proteccionismo não são motivadas pelo interesse do país mas sim pelo interesse de um sector concreto, representado pelo seu lóbi.

Quando primeiro estudei comércio internacional (na Católica, nalgum ano entre 78 e 83), uma das ideias mestras visava as origens e as consequências do proteccionismo. Cada país, individualmente, consegue aumentar a riqueza através da criação de barreiras à importação. O problema é que, se todos fazem o mesmo, acabamos numa situação que é pior para todos. Por outras palavras, o comércio livre é uma solução ideal mas instável.

Esta era, então, a versão oficial.

Até que um dia dois economistas fizeram o que os economistas nem sempre fazem: olhar para a realidade com atenção. E concluíram que muitas das medidas de proteccionismo comercial não são motivadas pelo interesse do país mas sim pelo interesse de um sector concreto, devidamente representado pelo seu lóbi. O título do trabalho de Grossman e Helpman diz tudo: “Protection for Sale”.

Consideremos o exemplo da indústria do aço nos E.U.A. Graças ao presidente Bush (e outros presidentes antes dele), o sector beneficia de elevadas barreiras à importação. Várias estimativas mostram que o custo para a economia americana – nomeadamente para os consumidores de aço – é várias vezes superior ao benefício recebido pelos trabalhadores do aço. Como se justifica então que os E.U.A. abracem uma medida que efectivamente tira dinheiro ao país?

Não faltam as teorias económicas que explicam como o proteccionismo pode aumentar a riqueza nacional. Mas quando olhamos para casos concretos somos quase sempre levados à mesma resposta: “protection for sale”.

Nestes dias, fala-se muito de proteccionismo no espaço europeu; não o proteccionismo às trocas comerciais (aqui o mercado é essencialmente livre), mas sim o proteccionismo aos movimentos de capital, nomeadamente a compra de empresas. A Espanha, a França e outros países tentam a todo o custo impedir a aquisição por estrangeiros dos seus campeões nacionais. Vale tudo, desde a intervenção económica à intervenção legal.

Também aqui não faltam as teorias justificativas, demonstrações “científicas” de que a compra por estrangeiros leva a uma perda de riqueza nacional. No caso da Endesa, por exemplo, teme-se que a compra pela E.On ponha em causa o abastecimento de electricidade em Espanha. De uma forma geral, a expressão “motivos estratégicos” é tão frequentemente invocada como raramente explicada; e quando explicada, o argumento carece solidez.

Perante tudo isto é impossível evitar a questão de antes: será este proteccionismo realmente uma forma de aumentar a riqueza nacional?



publicado por psylva às 13:07
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Empregos
Temos menos emprego e de pior qualidade, mais vulnerável à competição externa – alguns empregos só existem porque estão protegidos.

A França voltou às ruas, num protesto contra a possibilidade que a nova lei de Villepin abriu de criar “maus” empregos, pois são empregos sem a segurança que se tornou habitual associar ao “bom” emprego. Esta questão dos bons e maus empregos corresponde a uma visão muito europeia, ou melhor, muito continental, do mercado de trabalho. Quem não tem presente o desprezo dos políticos europeus, quando desdenham das menores taxas de desemprego que se observam nos Estados Unidos, explicando que isso se obtém à custa de ‘Mac Donald jobs’?

Ligado a esta visão está uma percepção muito pessimista da capacidade de adaptação de cada um de nós. Se for verdade que, quando alguém perde um emprego, fica eternamente condenado ao desemprego, então torna-se crucial defender “esse” emprego. E o desaparecimento “desse” emprego especifico vai condenar essa pessoa e vai trazer um peso para a Sociedade, que fica com a responsabilidade adicional de tratar dela. Basta ter uma prespectiva histórica um pouco mais longa para se perceber a falácia do argumento. A população activa na agricultura baixou historicamente de valores muito altos para cerca de 5% nos países mais desenvolvidos. Isso não causou desemprego em larga escala, pois as pessoas foram fazer outra coisa. Aliás é o facto de conseguirmos produzir todos os alimentos necessários (e mesmo excedentes) para toda a população, com apenas esta gente, que liberta os recursos humanos necessários para produzir outros bens e serviços, o que faz de nós uma sociedade bem mais próspera do no passado. E não teria feito sentido impedir a utilização da iluminação eléctrica, para proteger os empregos dos fabricantes de velas.

Na realidade a defesa do emprego para todos não passa, antes pelo contrário, pela defesa do actual emprego de cada um. Os empregos que são defendidos por legislação que torna quase impossível, ou muito caro, o despedimento, acabam por desaparecer à mesma, após uma agonia mais prolongada, se a actividade não for competitiva. A probabilidade de estar desempregado é muito menor nos Estados Unidos do que em França, e especialmente se pertencer em França a certos grupos, como os jovens das cidades satélites de Paris, entre os quais a taxa de desemprego é de 45%. O importante, para a defesa do emprego, é uma política económica que garanta um nível global de emprego, num quadro de flexibilidade, e não a defesa cega de todos os empregos actuais. Essa política, no curto prazo, é sobretudo uma política de estabilização macroeconómica, nas no longo prazo, o essencial é permitir que os empregos que existem sejam de facto em actividades competitivas. E isso só se consegue com mecanismos que facilitem a transição entre empregos, o que é o oposto da rigidez que os manifestantes franceses defendem na rua. O valor desta flexibilidade é tanto maior quanto mais rápida for a evolução do contexto económico, como acontece neste momento de autêntica revolução tecnológica. Há cinquenta anos as vantagens da flexibilidade em relação à segurança não seriam porventura tão grandes. E a grande vantagem dos empregos em actividades competitivas é que são por natureza muito mais estáveis. O que não se legisla, mas tem a enorme vantagem de ser um facto.

Com isto não se nega que os ajustes que são necessários tem custos. Todos estes processos têm atritos no mundo real, o que não se pode ignorar. E para algumas pessoas é muito difícil reagir adequadamente a essas mudanças. Mas esses custos estão ligados á rapidez da evolução das coisas e não desaparecem com a rigidificação do mercado de trabalho. Vão ser transferidos para outros, criando uma dicotomia entre ‘insiders’ e ‘outsiders’ difícil de compaginar com qualquer critério aceitável de justiça relativa. E pior, nesse processo de transferência, são ampliados. O resultado é um maior custo de ajustamento, distribuído de forma mais injusta. Temos menos emprego, e de pior qualidade, no sentido em que é mais vulnerável a competição externa, pois alguns empregos só existem porque estão protegidos.

A outra consequência desta análise é que torna claro que, pelo menos no longo prazo, não é verdade que haja uma tensão fundamental entre emprego e coesão social, como muitos defendem. O que há é uma tensão fundamental entre os empregados com uma posição de privilégio e os desempregados. A ilusão é pensar que é possível garantir cada emprego individual e ter simultaneamente uma economia que se ajusta o suficiente para criar emprego competitivo para todos. O Estado pode e deve garantir o emprego, mas não “estes” empregos.


publicado por psylva às 13:06
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De olhos em bico


Quando se passeia pelos centros comerciais ou os cinemas - por onde se arrasta a classe média portuguesa aos fins-de-semana - não se vêm chineses. Imagino que estejam a trabalhar ou em actividades de lazer dentro da sua própria comunidade imigrante.
Seja como for, os chineses, pelo menos estes chineses, têm uma atitude de vida que os orienta para o trabalho e não para o lazer.
A emergência da China, enquanto grande potência industrial, assusta muitas lideranças empresariais, um pouco por todo o mundo. A capacidade dos chineses produziram em grande escala e muito mais barato é um factor perturbador da chamada «ordem económica mundial». Grandes multinacionais e pequenas empresas não conseguem competir com os produtos chineses, colocados nos mercados internacionais a preços mais baratos. É a história dos têxteis chineses, que ameaçam a industria têxtil portuguesa. E também a dos automóveis chineses, que são comercializados a preços muito inferiores aos praticados pelo «establishment» da indústria automóvel mundial.
De forma que se criou aqui uma questão da ordem do comércio internacional. As indústrias ameaçadas argumentam que os chineses produzem em «dumping» social e ambiental - isto é, sem respeitarem as condições de trabalho e ambientais que são as comuns nas economias ocidentais. Em resultado, há quem reclame mais proteccionismo e este debate tem-se centrado à volta dos benefícios e malefícios do livre comércio e da «exploração» da mão-de-obra chinesa. De qualquer forma, como os industriais portugueses afectados por este tema são poucos e estão genericamente afastados dos círculos do poder político e mediático, esta tem sido uma discussão restrita aos pequenos meios associativos.
Mas a edição de domingo do Correio da Manhã noticia um facto curioso: «a área industrial de Chelas recebeu ontem o Centro Ásia, o mais recente espaço comercial chinês destinado a revenda para lojas portuguesas e chinesas. São mais de seis mil metros quadrados ligados à produção têxtil, sapataria, bijuteria e acessórios». O Centro Ásia é composto por cerca de 60 lojas, abertas das 10h00 às 23h00. O descanso semanal ainda não foi instituído mas, caso se concretize, será apenas um dia da semana. Desta vez, a questão chinesa não está longe, afastada para o mundo distante dos empresários do têxtil ou de uma qualquer outra indústria de trabalho intensivo. Estamos a falar de um ataque à «competitividade» dos milhares de pequenos e médios comerciantes já estabelecidos. E diz ainda, na mesma notícia, o senhor Dawei, um dos comerciantes deste Centro, que «trabalhamos quase 24 horas por dia e ganhamos pouco, por isso as coisas são mais baratas. Se ganhássemos mais, não precisávamos de trabalhar mais do que quatro ou cinco horas por dia», acrescentando «que os chineses são pessoas pouco voltadas para gastos supérfluos e muito empenhadas no negócio: ganhamos para comer.» Estes comerciantes chineses chegam ao mercado com preços mais baixos e com horários mais atrevidos de funcionamento. Mas o mais sensível é que estes comerciantes estão no mercado com uma postura mental distinta da do vulgar empresário português. De facto, quando se passeia pelos centros comerciais ou os cinemas - por onde se arrasta a classe média portuguesa aos fins-de-semana - não se vêm chineses. Imagino que estejam a trabalhar ou em actividades de lazer dentro da sua própria comunidade imigrante. Seja como for, os chineses, pelo menos estes chineses, têm uma cultura própria muito distinta da mentalidade dominante da actual cultura ocidental. É uma atitude de vida que os orienta para o trabalho e não para o lazer. E sabe-se como a cultura do ócio é hoje preponderante no «moderno» estilo de vida ocidental.
Não se trata de rejeitar a imigração chinesa. Antes pelo contrário - a entrada no País e no mercado de uma cultura diferente, orientada para o trabalho estimula os demais portugueses a encontrarem novas fórmulas de organizarem os seus negócios. É uma concorrência, como todas as concorrências, criadora. Mas é uma concorrência que coloca em causa alguns dos postulados da sociedade que o mundo ocidental criou nas últimas décadas. Uma cultura orientada para o trabalho intensivo, sem prezar as «distracções» e o sem número de solicitações «modernas» com que todos nos entretemos. A concorrência do quadro chinês de pensamento e de actuação deixou de ser um tema que preocupe apenas os industriais do têxtil ou os teóricos do comércio internacional. Agora, ela está mesmo dentro das nossas portas. Não a podemos evitar nem sonhar com proteccionismos legislativos. E podemos repudiá-la ferozmente, argumentando que ela não respeita os nossos «valores», ou podemos aprender com ela, no sentido também de a sabermos absorver e, com isso, sabermos recriar a nossa própria sociedade.




publicado por psylva às 13:06
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O mercado de trabalho e a última revolução francesa


1.EMPREGO POR ALGUMA INSTABILIDADE. Por estes dias, a revolução francesa de jovens e sindicalistas recusa que se liberalize o despedimento durante os dois primeiros anos dos contratos de trabalho de jovens até aos 26 anos. A intenção desta liberalização é a de facilitar a admissão de trabalhadores jovens, isto é, a de aumentar o seu emprego. Os jovens, porém, parecem preferir a maior estabilidade dos seus futuros ainda que menos prováveis empregos, que aliás só começa após o período experimental que anda por poucos meses, contra os dois anos do CPE. Assim, esta guerra é por pouco mais de ano e meio de instabilidade no início dos empregos; e, se considerarmos o recurso ao contrato a termo, a causa da guerra ainda fica menor.

2. O DESPEDIMENTO. É verdade que a evolução histórica do direito do trabalho europeu ocidental, desde a última guerra, privilegiou a estabilidade no emprego como um dos seus eixos principais.
Inicialmente, o despedimento era tipicamente livre, de uma parte e doutra (direito de despedir e de se despedir). A manutenção do contrato de trabalho supunha sempre a vontade concordante de ambas as partes. As limitações à liberdade de despedimento começaram com a imposição de aviso prévio: passava a ser obrigatório avisar a outra parte com certa antecedência. Essa antecedência tendia a ser proporcional à duração do contrato. O não cumprimento da obrigação de aviso prévio acarretava apenas o dever de indemnizar pelas remunerações correspondentes.
A fase seguinte centrou-se na proibição dos despedimentos abusivos, isto é, daqueles cuja causa era inadmissível face à lei e à moralidade pública. Por exemplo, despedimento de uma trabalhadora porque resistira ao assédio sexual. A consequência civil e laboral, nestes casos, era ainda uma indemnização pecuniária (sem prejuízo das responsabilidades penais que no caso coubessem).
Seguidamente, passou-se a exigir motivo justificado para despedir. Isto é, já não apenas exclusão de motivo inadmissível, mas exigência positiva de motivo justificativo.
Esta exigência, por sua vez, foi aumentando. Assim, uma primeira operacionalização da exigência de justa causa apenas estabelecia, como consequência do despedimento irregular, o pagamento de uma indemnização acrescida. Mas uma outra mais severa estabeleceu a nulidade do despedimento e a consequente obrigação de readmissão. Perante o dever de readmissão não cumprido, as consequências puderam ser menores: quando o empresário que não executava a readmissão era punido com uma indemnização pecuniária. E vieram a ser mais graves: quando a não readmissão se tornou forçosa pelo recurso à sanção pecuniária compulsória, que é irresistível: uma multa que cresce dia após dia, até ao infinito, enquanto não ocorrer o cumprimento.

3. RESULTADOS ESTATÍSTICOS. Os resultados estatísticos deste paradigma garantista, em Portugal, resultam praticamente aberrantes. A baixíssima percentagem de despedimentos por justa causa, com a complementação da curva de distribuição das classificações pelo desempenho, designadamente na função pública, choca frontalmente com os princípios da curva de distribuição gaussiana. A realidade do comportamento dos trabalhadores no emprego, em vez de espelhada no que se presume ser a "curva normal da distribuição", não aparece espelhada na expressão estatística. Pode perguntar-se: à linha estatística apresentada não corresponderá uma deformação da justiça relativa?

4. A "FLEXIBILIZAÇÃO" NECESSÁRIA. A avaliação da situação laboral do modelo europeu continental ocidental não pode ser simplista. Parece evidente que o empresário não deve poder dispor dos postos de trabalho da sua empresa com arbítrio tal que seja desproporcionado perante a moral social e choque com a função económica e social da propriedade e da empresa, e o legítimo exercício das correspondentes liberdades. Logo, é evidente que tem de haver limitação ao direito de unilateralmente fazer cessar a relação de trabalho.
Porém, a questão que se coloca, hoje, é a de saber se o modelo garantista que existe em França, como também em Portugal, não foi já longe de mais, a ponto de transformar o posto de trabalho numa quase propriedade do trabalhador, excluindo assim a competição entre os trabalhadores e levantando a questão de saber se ainda há mercado de emprego - a não ser para os desempregados, e mesmo aí com limitações, dadas as proibições discriminatórias e as imposições de preferência que se aplicam para novas admissões.
A questão é de princípios, na sua moldura mais ampla; mas tem carácter eminentemente prático, no seu desenho mais concreto, dependendo aí da avaliação dos seus resultados económicos e sociais. E é perante estes resultados que, nos vários países e na própria União Europeia, se vão avançando argumentos a favor da "flexibilização dos regimes de trabalho"; ou da necessidade de "agilizar o mercado de trabalho"; ou da "empresarialização dos trabalhadores"; tudo eufemismos para significar a necessidade de "desmonopolizar" o emprego e de abrir um pouco mais o mercado de trabalho.

5. A REFORMA DO MODELO SOCIAL EUROPEU. Reconhecer isto não é desconhecer as razões do Estado social; é reconhecer os efeitos perversos dos excessos do garantismo laboral, que aliás se voltam contra o Estado social e resultam injustos.
O que o modelo social europeu demonstrou historicamente é que, em democracia pluralista, é possível a compaginação de um sistema económico liberal (regulado) com um sistema social redistributivo solidário e garante da coesão social. Porém, o equilíbrio dessa compaginação é dinâmico, e não se pode estabelecer de uma vez para sempre. Exige ajustamentos; e, não apenas como o garantismo advoga, num só sentido.
A situação portuguesa actual ilustra um caso de desequilíbrio: como um país pode ser politicamente democrático e socialmente progressista, mas correlacionadamente estagnado (ou regressista) em termos económicos, o que não é auto-sustentável.
Em suma: a reforma do modelo social europeu em procura de novos equilíbrios dinâmicos de progresso económico de mercado e de solidariedade e justiça social não é um ataque; é uma salvação. E não importa a dificuldade: mesmo que (em democracia) seja uma quadratura do círculo, como disse Dahrendorf num artigo que publicou no PÚBLICO, não enfrentá-la é aceitar o impasse e a decadência. As contra-revoluções que se opuserem são suicidas.


publicado por psylva às 13:05
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O lugar do PSD

Imaginem que, num qualquer país da Europa Ocidental, um partido de "centro-esquerda" ganhava eleições prometendo pouco mais que austeridade, contra um partido de "centro-direita" que prometia reduzir impostos e aumentar pensões.
Poucos meses depois, o novo Governo aumentava os impostos. Congelava subsídios e progressões na carreira dos funcionários públicos, aumentava-lhes os salários abaixo da inflação e prometia aumentar-lhes a idade de reforma para 65 anos. Durante o seu primeiro ano de mandato, o desemprego subia para oito por cento, atingindo o valor mais alto em oito anos.
E imaginem agora - e poderá não ser fácil - que, um ano depois das eleições, o partido do Governo era ainda aquele que recolhia mais intenções de voto nas sondagens. Que o primeiro-ministro era o líder partidário com mais altas taxas de aprovação, próximas dos 50 por cento e cerca de 20 pontos percentuais acima das do líder do principal partido de oposição. E que esse líder da oposição, cujo partido tinha recentemente triunfado em duas eleições, era visto unanimemente como um "regente" a prazo, a quem só restaria esperar pela inevitável destituição na véspera das próximas eleições legislativas. Pode não ser fácil imaginar tudo isto, mas não é preciso imaginar: tudo isto se passa em Portugal.
Das várias questões que estes desenvolvimentos levantam, uma das mais importantes é esta: por que será tão difícil ser-se oposição ao actual Governo?
O comentário jornalístico tende a privilegiar explicações circunstanciais: a eficácia, real ou imaginada, da acção do Governo e do primeiro-ministro; a falta de "carisma" de Marques Mendes; os mecanismos de controlo da agenda política ao dispor dos Governos, que este parece saber usar com particular destreza; ou a "memória viva" do consulado Santana Lopes.
Já os politólogos costumam concentrar-se em explicações estruturais que, de resto, estão longe de serem específicas ao caso português ou ao momento presente. Há exactamente 40 anos, numa das raras obras dedicadas à triste condição de se ser "oposição" - Political Oppositions in Western Democracies (Yale University Press) - Robert Dahl, o decano dos cientistas políticos norte-americanos, delineava os traços fundamentais daquilo que estava para vir: um declínio estrutural da "oposição". Segundo Dahl, ao passo que os conflitos entre governo e oposição seriam cada vez menos estruturados em torno de características, interesses e identidades sociais dos eleitorados, retirando-lhes assim conteúdo político e ideológico, estaríamos simultaneamente perante a ascensão de um novo "Leviathan democrático, (...) que reflecte um compromisso com as virtudes do pragmatismo, moderação e mudança incremental; uma política não-ideológica ou anti-ideológica" (p. 399).
O fim da Guerra Fria e o triunfo do capitalismo liberal só acentuaram as tendências detectadas por Dahl. Isto não implica, claro, o fim de toda e qualquer oposição eficaz ao poder, mas tão-só daquela que meramente aspira a substituir aqueles que, de momento, vão manejando a custo as rédeas do "monstro". Resta-lhe apenas esperar pelos fracassos dos Governos e, entretanto - como sustentava há uma semana António Borges, com a habitual densidade ideológica - tentar a "sedução dos eleitores".
Contudo, é possível que o caso do PSD mereça atenção especial. Apesar dos ideólogos do partido terem sempre resistido a classificá-lo ideologicamente, esta indeterminação nem sempre constituiu impedimento a que o PSD encontrasse um papel claro com que se pudesse apresentar ao eleitorado.
Primeiro, e sob Sá Carneiro, o PSD assumiu-se como a força de oposição moderada ao poder militar do pós-25 de Novembro e à sua aliança (com o tempo desfeita) com o PS; mais tarde, e sob Cavaco Silva, como o agente do desmantelamento das "conquistas da revolução" mais manifestamente desfasadas da nossa integração no mundo ocidental.
Completados esses projectos, o que sobrou? O que representa e que lugar ocupa o PSD? A resposta não é evidente. Mais evidente é que, sob a liderança de Cavaco Silva, o PSD se transformou numa manifestação acabada daquilo a que, num famoso artigo de 1995, Richard Katz e Peter Mair chamavam o "partido-cartel", caracterizado pela simbiose entre os quadros do Governo e do Estado e a liderança partidária de topo, pela emergência de uma clivagem entre essa liderança e uma cada vez mais autónoma elite intermédia de líderes regionais e locais e, finalmente, por conflitos internos que têm a ver muito menos com a representação de interesses de segmentos concretos do eleitorado do que com as melhores estratégias para obter e repartir cargos e poder.
Esta sua natureza de "partido-cartel" é, aliás, o maior impedimento a que o PSD se possa assumir, como alguns lhe vão pedindo, como um partido mais claramente liberal do ponto de vista económico. O problema não é tanto o da insensatez eleitoral de semelhante estratégia, mas sim o facto de, com um partido condicionado pela voracidade autárquica e interessado em preservar a cartelização de lugares e recursos do Estado, não há líder a quem se consinta propor a desmontagem do Leviathan.
E entretanto o PS foi mudando. Semelhante ao PSD em muitos dos anteriores aspectos, os seus líderes aproveitaram, no entanto, as sucessivas lutas entre facções ideológicas internas para, quando delas vencedores, utilizarem essa autonomia estratégica para a reconfiguração do discurso do partido de acordo com aquilo que, afinal, tinha sempre sido a sua prática política enquanto poder: a ocupação do lugar cardinal da política moderna que o PSD julgava seu, "entre o centro-esquerda e o centro-direita", o centro do centro.
Hoje, como demonstram sucessivos estudos eleitorais, o "votante mediano" é do PS. Contra isto, pode não restar muito mais para além de esperar pelos fracassos do actual Governo e ir prometendo mais e melhor do mesmo. Contudo, como a débil vitória nas eleições de 2002 e tudo o que se lhe seguiu claramente sugerem, até isso pode já não ser suficiente.


publicado por psylva às 13:04
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Teerão 2006


Estamos na fase da ameaça, da pressão psicológica, do mostrar músculos em público. Nem o Irão nem os ocidentais parecem “ceder”.

Começa a aproximar-se a olhos vistos o dia das grandes decisões no que toca ao Irão. Os sinais estão por todo o lado. Os iranianos testam mísseis, em imagens de propaganda marítima, e dizem que têm o projéctil mais rápido do mundo! Nos jornais ingleses, saem as primeiras notícias, ainda que imediatamente desmentidas, de que Tony Blair já reuniu com os seus chefes militares, para estudar uma “intervenção”. Quase na mesma altura, Jack Straw e Condoleeza Rice dão a entender que, apesar de reconhecerem “milhares de erros tácticos no Iraque”, não vão dar ao Irão mais de 30 dias para parar o enriquecimento de urânio. Os iranianos respondem com ameaças, de fontes não confirmadas, prometendo retalições terroristas executadas pelo Hezbollah.

Entrámos pois na fase da ameaça, mais ou menos velada; da pressão psicológica, do mostrar músculos em público, enquanto em privado se vai tentando evitar o descarrilar definitivo da questão. Aos olhos do público, os dois lados parecem “não querer ceder”. O Irão não aceita uma “ingerência nos seus assuntos internos”, e não quer abrir mão da possibilidade de se tornar uma potência regional nuclear, colocando-se no mesmo patamar que Israel, o Paquistão ou a Índia. Por outro lado, americanos e europeus consideram que o Irão é um país agressivo, capaz de colocar Israel em perigo, e estender a sua influência xiita a outros países, como por exemplo o Iraque.

Parecendo esgotadas as possibilidades de a Rússia conseguir acalmar os iranianos, haverá forma de se evitar um ataque americano ao Irão? E haverá possibilidades de esse ataque produzir os efeitos desejados? Pelo andar da carruagem, tal ataque parece inevitável, mas é muito duvidoso que os efeitos desejados sejam conseguidos.

Na verdade, com o Iraque a ferro e fogo, a credidilidade americana na região e no mundo em geral, está pelas ruas da amargura. Aonde quer que vá, Condoleeza Rice é apupada, e com visível dificuldade tem de reconhecer as suas fraquezas. Embora aparentemente a questão seja de mais fácil compreensão para todos – ninguém quer que o Irão tenha bombas nucleares – é muito difícil convencer o mundo que a melhor solução é um ataque à bomba ou uma invasão do Irão. Para mais, atolados no Iraque, os americanos não têm já exército para se meterem noutra aventura, e também não têm dinheiro para a pagar. A popularidade de Bush atingiu os valores mínimos, e o povo americano desconfia da sua lucidez e da sua estratégia. Pedir a esse povo que continue a ver soldados a morrer no Irão e no Iraque ao mesmo tempo, é quase pedir o impossível. E, se a ideia é optar por raides áereos cirúrgicos, como escolher os alvos, quando aquilo que os iranianos têm, não são ainda as bombas, mas apenas instalações dispersas por dezenas de locais onde é possível que venham um dia a fabricar bombas nucleares? Sem alvos concretos, e a certeza de os atingir, um ataque poderá ter efeitos punitivos, mas desestabilizará definitivamente o poder político e a opinião pública do Irão, e colocará do seu lado, mais do que já estão, os xiitas de todo o mundo, em especial os iraquianos. Atacar o Irão poderá pois não ser eficaz, e ao mesmo tempo atirar definitivamente o Iraque para a guerra civil, desestabilizando pelo caminho os mercados petrolíferos.

Trata-se pois de um dilema dramático para o Ocidente: a escolha entre uma situação péssima - deixar o Irão prosseguir a caminho da bomba nuclear – e uma situação terrível – intervir militarmente sem certezas de atingir objectivos e com a certeza de lançar a região definitivamente no caos.

Há poucas semanas, houve um pequeno sinal de esperança, quando surgiram notícias de que os líderes religiosos iranianos aceitavam conversar com os americanos sobre o Iraque. Pareceu existir aí um vislumbre de entendimento, até porque são os líderes religiosos, e não o presidente do Irão, quem tem um controle do programa nuclear. Pode ser que, no lado oculto da política, haja ainda esperanças. Mas à superfície, a retórica ameaçadora de ambas as partes faz-nos temer o pior.
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publicado por psylva às 13:03
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Riscos laborais no século XXI
Impõe-se equacionar novas fórmulas, que envolvam governos e mercados, para melhor gerir os riscos pessoais que os trabalhadores de hoje enfrentam em todo o mundo.

O público centra cada vez mais a sua atenção nos riscos que a globalização e as TI têm criado ao nível salarial e de subsistência das famílias. O debate em torno de novas ideias para fazer frente a estes riscos tem sido, debalde, pouco construtivo. De facto, o ímpeto necessário à implementação destas ideias, forte ainda há poucos anos, parece estar agora a esmorecer.

Que não haja dúvidas: estamos solidários com aqueles que, chegados à meia-idade, ou mais, dão por si substituídos por trabalhadores com magros salários noutras partes do mundo, quando não por computadores ou robôs. Mas até que ponto iremos tomar uma atitude?

A lógica do ”seguro contra desemprego”, tão em voga há alguns anos, pode sintetizar-se da seguinte forma: cabia ao governo proteger os trabalhadores cujo emprego estivesse em risco e não fossem capazes de encontrar outro dentro dos mesmos parâmetros salariais. O programa criado para o efeito asseguraria, então, o pagamento de uma fracção ou de metade da diferença entre o salário anterior e o actual durante um período pré-definido - dois anos, por exemplo.

O conceito foi explanado por Robert Z. Lawrence e Robert Litan na obra ”Save Free Trade”, editada em 1986, e reavivado por Litan e Lori Kletzer num artigo publicado em 2001. A proposta suscitou interesse e levou, inclusive, à criação de um programa de demonstração nos EUA em 2002. Nesse mesmo ano, a Comissão Hartz recomendou a sua introdução na Alemanha, ainda que adaptada. Os programas ”seguro contra desemprego” foram igualmente tema de debate em diversos países, tendo sido implementados com as devidas adaptações na Grã-Bretanha, França, Suiça e Irlanda.

Os programas em questão, apesar dos aplausos das elites intelectuais, ainda estão longe de ter um peso significativo na economia mundial, embora devessem tê-lo. E não bastam por si só, devem ser complementados por outros mecanismos.

Ora, o ”seguro contra desemprego” poderia constituir um mecanismo mais vantajoso e eficiente para o financiamento de formação ‘on-the-job’, substituindo-se aos programas de formação promovidos por entidades estatais. Raramente os formandos de programas orientados pelo Estado conseguem obter um emprego com o nível de remuneração prometido. Na óptica dos proponentes do ”seguro contra desemprego”, a eficácia seria muito maior se fosse a entidade empregadora a desenvolver a formação, visto ter noção das verdadeiras necessidades da empresa e dos conhecimentos que o trabalhador teria de apreender. E tudo indica que dois anos bastam para proceder a uma reciclagem, após a qual o trabalhador poderá aceder a um salário mais elevado sem recurso a subsídios estatais. Os governos receiam, acima de tudo, as despesas que o ”seguro contra desemprego” possa acarretar em caso de grande adesão. Eis porque não foi implementado em larga escala.

Nos EUA, por exemplo, o programa ”seguro contra desemprego” abrange apenas os trabalhadores da indústria transformadora, por esta ser extremamente vulnerável face à concorrência e por não ser possível a transferência de competências, conforme definido pelo Ministério do Trabalho norte-americano, que estipulou um ”tecto” para os benefícios, que não deve exceder os 5 mil dólares por ano. Em suma, o programa caiu no esquecimento. Se não for renovado, termina já no próximo ano. O cenário mais provável, tendo em conta os elevados défices dos EUA.

É, pois, essencial que o ”seguro contra desemprego” ganhe novo fôlego e, para isso, impõe-se reconhecer que este é somente um dos muitos mecanismos possíveis para lidar com os riscos do século em curso. O actual conceito peca, essencialmente, por limitar os pagamentos a um curto período de tempo e por depender dos efeitos a longo prazo das acções de reciclagem inerentes aos programas. Perder um emprego bem remunerado tem, certamente, consequências nefastas. Todavia, não será um programa de reciclagem que vai apetrechar devidamente um trabalhador com mais de 50 anos e no desemprego.

Em 2003, propus através do meu livro ”New Financial Order: Risk in the 21st Cenury” uma abordagem diferente, a que chamei ”seguro de subsistência”. Tal como o nome indica, visa ir além de um mera bolsa de oxigénio temporária ou de um subsídio para reciclagem profissional. Visa, sim, abordar as mudanças a longo prazo no mercado laboral e não garantir níveis salariais temporários. Nele defendo a intervenção do mercado e não a promoção de programas governamentais.

As seguradoras privadas assegurariam, assim, um fluxo de rendimentos ao titular de um ”seguro de subsistência” caso o ”índice” de rendimento médio profissional ou regional decrescesse consideravelmente. Este fluxo não estaria arbitrariamente limitado a um par de anos – ou a qualquer outro período –, antes se manteria até o índice normalizar. Por outras palavras, pretende-se desenvolver uma protecção para toda a vida.

A duração limitada dos programas governamentais deve-se essencialmente, aos chamados ”perigos morais”. Ou seja, pretende impedir que a preguiça leve a melhor ou que as pessoas aceitem trabalhos menos bem pagos para continuar a beneficiar desse apoio, que lhes assegura o equivalente a um salário de uma ocupação mais exigente. O ”seguro de subsistência” não se compadece com tais situações, na medida em que está ”indexado” à subida ou descida dos índices de rendimento, que escapam ao controlo dos indivíduos. E encerra igualmente outra vantagem. Sendo o prémio determinado pelo mercado, este acabaria por ser mais elevado para as profissões em risco de deslocalização ou mudanças técnicas. No fundo, actuaria como sinal tangível e como incentivo a todos os trabalhadores para anteciparem a perda de emprego.

Não quero com isto dizer que o ”seguro contra desemprego” seja má ideia ou que não deva ser implementado a uma escala mais alargada. As duas modalidades – contra desemprego e de subsistência – podem, porém, desempenhar um papel importante na gestão do risco. Impõe-se, assim, uma visão de futuro. Impõe-se equacionar novas fórmulas, que envolvam governos e mercados, para melhor gerir os riscos pessoais que os trabalhadores de hoje enfrentam em todo o mundo.



publicado por psylva às 13:03
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Financial Times 31/3/2006

Uma política obcecada com o preço piora a Saúde. Quando centrado no preço, o Governo acaba por prejudicar todos: utentes, indústria e a economia.

Factos: “Durante a maioria do séc. 20, as farmacêuticas alemãs lideraram o sector mundial, com inovações fundamentais: desde a aspirina à pílula” (cit. FT).

E continua o FT: “Hoje, os laboratórios alemães são débeis... a Alemanha já não tem uma única empresa nas 12 maiores mundiais... a Hoechst foi comprada pela Aventis... a Knoll pela Abbott... etc.... Para se encontrar as maiores empresas mundiais é necessário atravessar o Reno para sul (Suíça: Novartis e Roche); o canal (R.U. [Reino Unido], Irlanda: Glaxo, AstraZeneca); ou o oceano (EUA: Abbott, Pfizer)”.

Porquê?: “A Alemanha destruiu a sua indústria... e o mercado é horrível. Parte da culpa é das empresas e sua lentidão em completar a investigação química com biológica e biotecnológica. Além de uma cultura de consenso e burocrática: em algumas empresas alemãs o comité que decide se um projecto de investigação deve prosseguir ou não, chega a ter 70 pessoas contra 12 p.e. na AstraZeneca”.

Segue-se “a sociedade com o seu modelo social, criando dificuldades de reestruturação e redução de empregos, apoiando uma... estrutura accionista baseada em bancos” e promíscua: o resultado é a lentidão na tomada de decisões.

Finalmente, há a política farmacêutica governamental e “a sua ênfase no preço... com pressão sobre o preço da inovação, com resultados desoladores”.

Explicação: sem protecção para a sua inovação, as empresas votam com os pés e emigram. Fogem. Para o R.U., Irlanda, EUA, etc. Afectando o PIB, empregos e balança comercial (a inovação tem que ser importada).

Donde, uma política obcecada com o preço piora a Saúde (lentidão na entrada da inovação no mercado devido a maior tempo para a decisão de comparticipação, rupturas de ‘stocks’ nos pontos de venda, menor % de medicamentos orfãos lançados, maiores estadias hospitalares), etc.

Pelo que, quando centrado no preço, o Governo faz de aprendiz de feiticeiro, criando uma emenda pior que o soneto, e acabando por prejudicar todos: utentes, indústria, economia e até os contribuintes. Interesses diversos que deveriam ser protegidos em equilíbrio. Porque como disse Aristóteles: a virtude encontra-se no ponto equidistante de dois defeitos. A virtude está no meio.

Prova?: a evolução ao longo das últimas duas décadas: produção de medicamentos na Alemanha em % da UE: de 24% para 15%. Do VAB farmacêutico em % da UE: de 24% para 19%.; e em % da OCDE: de 12% para 7%. Exportações em % da UE: de 26% para 17%. Etc. etc.

Mas pelo contrário: no R.U. onde a inovação tem preço livre: o VAB (em % da UE) cresceu à taxa de 1,3% ao ano, o saldo da balança comercial farmacêutica em % do PIB passou de 0,22% para 0,33%; e assim sucessivamente.

Moral da história?: os governos devem resistir à tentação de centrar a sua política farmacêutica exclusivamente no preço. É simples? É. Só que, e citando O. Wilde: “os governos resistem a tudo menos... às tentações”.


publicado por psylva às 13:02
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Cortes de gestão

Tendo em conta a pressão no mercado de trabalho, pelo lado da procura, é fácil fazer uma gestão sacrificando o factor trabalho.

“Um navio pode dar à costa por força do mau tempo, mas encalhar tem toda a mediocridade e azedume do erro humano”.
Joseph Conrad (Escritor inglês)

Não existe hoje nenhuma empresa que não “faça gala” nos cortes introduzidos ao longo da sua cadeia produtiva. Aliás, tornou-se mesmo uma moda fazer cortes nas despesas gerais, nas de representação, nos benefícios sociais dados aos colaboradores e o maior corte veio justamente, do número desses mesmos colaboradores. Um bom sistema de gestão tem que eliminar desperdícios, controlar custos, mas evitar cair numa situação extrema em que seja o factor trabalho o único a ser sacrificado.

Tendo em conta a pressão que existe hoje no mercado de trabalho pelo lado da procura, é relativamente fácil fazer uma gestão sacrificando o factor trabalho. Com medo e em risco de perder o emprego, muitos são aqueles que acabam por trabalhar muito mais horas do que aquelas consagradas nas contratações colectivas de trabalho, horas essas completamente gratuitas para uma entidade patronal aproveitadora da situação difícil que o mercado de trabalho vive.

Esta situação relatada anteriormente é válida para os que procuram o primeiro emprego, tendo que se sujeitar a condições verdadeiramente incríveis para poderem começar a trabalhar; aqui podemos contar situações oferecidas muito abaixo das suas competências, salários a roçar a vergonha nacional e terminando no aproveitamento do conceito “Estágio” para não pagarem subsídio de férias nem de Natal, bem como não reconhecerem o direito a gozo de férias. No entanto, o desempenho requerido é tão ou mais exigente, que aquele que é requerido a quem está nos quadros das empresas e que gozam de algumas condições bem superiores. E não pensem que é nas pequenas empresas que esta situação se passa. Não, pelo contrário, são algumas empresas de referência nacional que patrocinam estas situações.

Depois existe a outra situação que é aquela que se prende com colaboradores há vários anos na empresa. Aqui existe uma distinção, entre os que estão com o “regime” e os que se limitam a fazer o seu trabalho. Se estão com o “regime”, apesar de medíocres, mal qualificados e incapazes de coordenar uma linha de pensamento ou dizer uma frase que faça sentido, acabam por ver a sua lealdade compensada com acréscimos pecuniários interessantes e outras benesses exponenciadas (cartão de crédito, valor da viatura de serviço, valor para gasolina de utilização pessoal, viagens, etc). Se está do outro lado da “barricada” que é como quem diz: se faz o seu trabalho de forma correcta mas não engrossa o rosário de fiéis servidores do poder dominante, se não se curva perante a hipocrisia reinante ou se não alinha pelo beija-mão do súbdito ao seu senhor, tudo lhe é retirado! Os cortes são gerais (viatura, cartão de crédito, gasolina e parte variável do salário). É um colaborador a abater de qualquer forma, nem que para isso se inventem e forjem os mais rocambolescos episódios, por vezes patéticos e nauseabundos mas que vão forçando situações do agrado de muitos que têm a gestão de algumas empresas sob sua responsabilidade.

A este propósito de cortes e da forma completamente inopinada, desgarrada e sem pudor como a sua esmagadora maioria é feita, naqueles que se referem ao factor trabalho, lembro-me sempre daquela célebre carta que Eça escreveu ao então presidente da Companhia das Águas de Lisboa.

Certo dia, Eça de Queiroz recebeu uma carta da Companhia das Águas de Lisboa a anunciar-lhe que lhe iam cortar o fornecimento da água por falta de pagamento. Perspicaz, incisivo e mordaz como era seu timbre, Eça foi lesto a responder e por carta escreveu: “Se o senhor Presidente me quer cortar a água, que cortarei eu a Va. Exa.?”.

De facto, perante cortes no factor trabalho que na sua grande maioria são totalmente inexplicáveis e inexplicados, apeteceria aos visados perguntar perante aquela gritante situação de revolta, de forma queirosiana, o que iriam eles cortar aos autores de tais dislates. Acredito que cada um teria o seu corte preferido a fazer!

O nosso problema sempre foi uma abordagem séria à mediocridade e enquanto esta não se fizer, vamos ter muitos portugueses (tal como o Eça), a apetecer cortar qualquer coisa a alguém!
____



publicado por psylva às 13:01
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A terrível injustiça fiscal

Portugal aumentou bastante a sua injustiça distributiva desde o 25 de Abril. Ninguém diz isto em voz alta, mas hoje há mais disparidade entre ricos e pobres que na ditadura. Entre as causas, que são variadas, existe um terrível mecanismo de desigualdade mesmo no centro do processo: o sistema fiscal.

Em 1967/68, no primeiro estudo estatístico da nossa distribuição de rendimentos, o nível de desigualdade era semelhante ao que actualmente se tem em França ou Irlanda, um valor intermédio na Europa. A discrepância nacional aumentou desde então em todas as décadas, menos nos anos 80, e hoje caímos para a cauda da União. Segundo o Banco Mundial, estamos ao nível de Moçambique ou Jordânia.

As implicações políticas são curiosas. Os anos revolucionários, de 1973 a 1980, registaram um dos maiores saltos na injustiça, enquanto a única (pequena) melhoria incluiu o "cavaquismo economicista". Nunca como aqui se vê tão bem a distância entre as palavras bombásticas e a realidade.

A discussão das causas económicas é muito mais relevante. Boa parte da desigualdade provém, apenas, do desenvolvimento, que sempre gera algumas diferenças. Não é difícil ser igualitário quanto todos são pobres, enquanto a forte dinâmica produtiva cria desvios inevitáveis. Mas as razões mais perturbadoras estão naquele sistema que devia corrigir o problema, mas está entre os seus principais motivos: é o Estado quem impõe muita da injustiça na nossa riqueza.

A despesa pública tem efeitos ambíguos. Por um lado, a Segurança Social contribui fortemente para aliviar a pobreza; mas, por outro, o sector público fornece quase de borla muitos bens aos ricos, da universidade ao teatro, enquanto alimenta privilegiados com salários, subsídios e regalias. Como todas estas despesas são financiadas pelo dinheiro dos pobres, o grande motor estatal da desigualdade está do outro lado do Orçamento, na receita.

A sociedade portuguesa, como todo o mundo desenvolvido, criou impostos sofisticados e complexos para promover, não o desenvolvimento, mas a justiça. Os elaborados mecanismos do IRS, IRC, etc. existem para dirigir a carga sobre os mais ricos, aliviando os pobres. Tal, aliás, só se consegue com fortes custos na produtividade, pois castiga-se quem mais produz e trabalha. Isso é aceitável, porque a equidade é o propósito consensual que o justifica.

Entre nós, porém, a enorme evasão fiscal leva os impostos a prejudicar simultaneamente o progresso e a justiça. A colossal fuga tributária perverte totalmente os nobres objectivos teóricos, orientando a quase totalidade dos impostos cobrados para o consumo e o trabalho por conta de outrem. Juntando a isto o explosivo apetite governamental por despesa, o fisco vê-se forçado a enviezar crescentemente a carga. São os impostos sobre trabalhadores e consumidores que sustentam a esmagadora despesa pública. A injustiça resultante é brutal.

O problema é tratado só com juras solenes de combate à fraude. Não admira que a injustiça cresça. Ultimamente, o cruzamento de dados e a captura de faltosos parecem ter conseguido alguns ganhos efectivos. Mas isso não aliviou a carga sobre os pobres; apenas deu mais dinheiro ao Estado. Assim, o esforço pouco melhorou a justiça. As novas técnicas tornaram mais eficaz o funcionamento de um sistema perverso.

A isto juntam-se as regras não escritas do fisco, com bastante influência na distribuição. Quem declarar donativos para desconto nos seus impostos, por exemplo, fica com uma enorme probabilidade de ser "sorteado" para inspecção fiscal (ou isto é uma regra tácita, ou então existe aqui uma incrível regularidade aleatória). Muitos contribuintes, para evitarem maçadas, começam a deixar de inscrever as suas dádivas, ou, até mesmo, de dar. Desta forma, a tacanhez dos funcionários destrói as boas intenções da lei.

A finalidade última das repartições de finanças não é arrecadar dinheiro, mas justificar os seus postos de trabalho. Por isso permanecem as infindas inspecções às declarações dos pobres, cujo eventual ganho fiscal seria sempre menor que o custo do tempo do inspector.

Portugal era tradicionalmente um país sem graves problemas sociais de desigualdade. Havia muita pobreza, mas sem os contrastes de outras zonas do mundo. É paradoxal que tenha sido a democracia a suscitar o problema, colocando-o já num estádio preocupante. Com a agravante de que as soluções propostas estão, também elas, ligadas à causa da injustiça.




publicado por psylva às 13:00
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