Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006
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O pragmatismo governamental
Uma das verdades actualmente à deriva no mar da sabedoria nacional é esta: o presente Governo não deveria ser definido através da oposição entre esquerda e direita, mas entre ideologia e pragmatismo. Portugal teria, muito simplesmente, um Governo "pragmático". Dito isto, falta saber o que isto quer dizer. Como quase todos os termos políticos, não adianta incomodar os dicionários para determinar o sentido de "pragmático". Será talvez mais interessante notar o modo como alguns tendem a conciliar a tese do pragmatismo governamental com a esperança de ver o Governo, num ímpeto reformista, dobrar o cabo do corrente modelo social. Ora, há aqui um equívoco. Porque o Governo ou é pragmático ou é reformista. As duas coisas não são compatíveis.
O actual Governo do Partido Socialista é pragmático, no sentido em que todos os governos do PS, desde 1976, foram pragmáticos. Em 1997, a Juventude Socialista pediu a vários notáveis do actual regime que explicassem "o que é governar à esquerda". É ainda hoje uma leitura edificante. Mário Soares, depois de recordar ironicamente que sempre foi "acusado de governar à direita", deu esta definição do que era governar à esquerda: "É governar com o pragmatismo necessário para compreender as realidades internas e externas que condicionam o nosso país e os parâmetros da globalização." Obviamente que ao governante de esquerda não ficava bem a nudez forte do pragmatismo: convinha-lhe cobrir-se com o manto da "sensibilidade social" e exibir as devidas tatuagens tribais ("republicanismo", "laicismo", "antifascismo", "causas fracturantes").
Em 1997, a grande preocupação dos próceres do actual socialismo, como António Vitorino, era afastar a ideia de que, para governar à esquerda, fosse necessário "transgredir", como se a esquerda fosse exterior ao regime político e económico. O governo de esquerda definir-se-ia, não por esta ou aquela orientação política, mas por uma "forma de estar nas instituições". Governar à esquerda seria, em resumo, o que a esquerda, identificada pela "forma de estar", fosse levada a fazer quando ocupava o poder. Esta atitude foi a que melhor poderia servir a um partido que sempre precisou do Estado como de oxigénio. Como Mário Soares lembrou em 1980, quando se zangou com os seus camaradas, o partido estava pejado de "pessoas que vieram para o PS porque o PS estava na área do poder. Porque querem exercer o poder. E pensam que a política é o exercício do poder e não o exercício da oposição".
O PS tem esta característica: nunca, desde 1974, encabeçou nenhuma grande mudança em Portugal. Não fez nem as nacionalizações, nem as privatizações. Também não as desfez. O que fez foi moderar o que outros fizeram. A grande preocupação dos líderes socialistas foi sempre a de arbitrar entre as várias correntes políticas, esperando com isso serem reconhecidos, à esquerda e à direita, como o partido natural do Governo. É esclarecedor sobre a natureza do PS que, actualmente, a mais agressiva voz da esquerda dentro do partido seja a de uma antiga militante do PSD. O antifascismo lírico de Manuel Alegre pode levantar muitos votos no país, mas não no partido. Ao contrário do que se diz, José Sócrates corresponde bem ao verdadeiro PS, aquele cujo rosto "pragmático" Mário Soares desvendou em 1980.
Para exercer o poder é preciso, agora, respeitar os limites europeus do défice, aumentar impostos e cortar ou congelar prestações e salários. Em tempos, também foi necessário fazer acordos com o FMI e desvalorizar o escudo (a maneira antiga, indirecta, de diminuir salários e prestações). O PS, nos seus tempos de Governo, fez tudo isso. O que nunca fez foi tentar romper com o sistema instalado. O PS tem um projecto de poder, não tem um projecto de mudança do país. Basicamente, os actuais ministros cortam e retiram, pelas mesmas razões porque deram e acrescentaram no tempo de António Guterres: por pragmatismo. Poupam porque não há dinheiro, tal como gastaram quando havia. Nada disto é aberrante na Europa. Todos os governos europeus são hoje pragmáticos. Desistiram de reformas complicadas. Preferem ajustamentos e reafinações, à espera de uma retoma anunciada todos os anos para o ano seguinte. Numa época em que a vida é ainda aceitável, para quê correr grandes riscos? Nunca se farão reformas por pragmatismo, porque o pragmatismo aconselha a não esticar a corda. O reformismo depende de convicções alheias aos dirigentes "pragmáticos" do PS. E isto tranquilizará algumas famílias, mas deveria fazer desesperar outras.