Terça-feira, 3 de Abril de 2007
Cenas do capitalismo português
O que pensará um empresário quando fica a saber que alguns dos que trabalham para si só o fazem porque não têm alternativa de subsistência?
1A tão discutida frase do ministro Manuel Pinho na China, a propósito da vantagem competitiva da economia portuguesa que lhe adviria dos baixos salários que por cá se praticam, só pecou por ser dita no local errado: de baixos salários e «dumping» social se compõe a vertiginosa produtividade da economia chinesa e o seu originalíssimo modelo de ‘socialismo’, em que já só o PCP parece acreditar. À parte esse erro geoestratégico, o que Manuel Pinho disse reflecte exactamente o que continua a ser o pensamento dominante em largas camadas do nosso patronato e até dos nossos economistas. Por mais ‘modernização’ invocada, por mais ‘choques tecnológicos’ apregoados, por mais verbas públicas gastas em ‘qualificação’ e formação profissional, há coisas que nunca mudam, como essa fé de tantos empresários de que quanto pior pagarem aos seus trabalhadores, mais próspera será a firma. Uma excelente reportagem da autoria de Raquel Moleiro, saída a semana passada na revista do Expresso veio lembrar exemplarmente esta triste realidade: esse Portugal empresarial ‘profundo’, assente nos baixos salários, na desumanização do trabalho e nos métodos de gestão mais primitivos continua aí, sólido e imutável, mesmo onde se esperaria que fosse sucedendo o contrário.
A reportagem descreve-nos a situação de duas trabalhadoras, em firmas diferentes. A primeira trabalha numa multinacional - a Xerox - é licenciada em gestão de «marketing» e vendedora de produto. Logicamente, ganha mais do que a outra, que é controladora de rolhas de cortiça na Corticeira Amorim. A primeira ganha quatro vezes mais do que a segunda, embora esteja no início da sua vida profissional, e tem ainda direito a carro, telemóvel, computador, comissões e prémios, tudo pago pela empresa. A segunda, depois de mais de vinte anos a trabalhar para a empresa, tem um salário de 527 euros, mais subsídio de refeição, e ponto final. Até aí, não fosse o salário da segunda tão miserável, ainda se poderia tentar compreender: diferentes qualificações, diferentes salários e regalias. O que já não dá para justificar são as diferenças abissais na política social de ambas as empresas, e isso é igual para todos os trabalhadores. Na Xerox, ao quarto mês de licença de parto, a empresa junta um quinto mês, por sua iniciativa e extensível aos pais; dá 27 dias úteis de férias por ano, mais duas pontes e o dia de aniversário do trabalhador; tem creche, ginásio com professor, piscina, campo de futsal e farmácia dentro das suas instalações, para que as mães, por exemplo, não tenham de perder tempo para ir comprar produtos para os bebés; uma vez durante a manhã e outra durante a tarde procede-se a uma distribuição de fruta fresca pelos locais de trabalho e, se alguém pensar em prolongar o trabalho até tarde, as luzes são desligadas automaticamente às 20 horas, porque a empresa acredita que quanto melhor for a vida familiar de um trabalhador, melhor é o seu desempenho profissional. Já a trabalhadora da Corticeira Amorim não tem direito a nada disto. Trabalha em pé oito horas por dia, com uma hora de intervalo para almoço, com a função de escolher, entre 100.000 rolhas que lhe passam à frente todos os dias, quais as que têm defeito. É um trabalho digno das sequências célebres dos ‘Tempos Modernos’ de Charlie Chaplin e uma fonte constante de doenças profissionais de toda a ordem. Mesmo assim, foi preciso uma greve para que as escolhedoras de rolhas da Corticeira Amorim conquistassem o direito a ter um intervalo de quinze minutos de manhã e outro à tarde. Neste quadro, não admira que a trabalhadora da Xerox, que acaba de ser mãe, planeie ter dois ou três filhos, enquanto que a da Corticeira Amorim sonha sem esperanças poder ter um segundo filho, se o marido entretanto não emigrar em busca de uma vida menos indigna do que esta.
Resta acrescentar que a Corticeira Amorim não é uma empresa qualquer no panorama nacional. Domina largamente o negócio da transformação da cortiça, estabelecendo de facto os preços à produção. Pertence a um grupo que está presente em vários sectores da vida económica do país e além-fronteiras e no passado recebeu abundantes verbas do Fundo Social Europeu justamente para qualificar trabalhadores. É propriedade de Américo Amorim, tido como o segundo homem mais rico de Portugal, feito comendador de Mérito Industrial por um ou mais do que um Presidente da República. Volta e meia a imprensa transpira notícias sobre os milhões que ele ou o grupo ganharam em negócios bolsistas sem qualquer riqueza acrescentada - apenas porque o dinheiro faz dinheiro, como explicou Marx. Ou então, publicam-se outras notícias, nem sempre abonatórias, sobre a prosperidade dos seus negócios em Angola, em parceria com a inevitável filha do Presidente José Eduardo dos Santos e seguramente não em benefício da legião de miseráveis que morre de fome ou de doença em Angola, no meio da ostentação de outros.
Não sei se o comendador Américo Amorim terá lido esta reportagem e, em caso afirmativo, como terá sido a sua reacção: terá encolhido os ombros com indiferença, terá ficado incomodado, terá ficado a meditar no assunto, terá concluído que os da Xerox não sabem gerir uma empresa? O que pensará um empresário quando fica a saber que alguns dos que trabalham para si só o fazem porque não têm alternativa de subsistência?
2 Na história interminável e rocambolesca da OPA da Sonae sobre a PT, as cenas mais extraordinárias estavam reservadas para o último dia, o da decisiva assembleia-geral, onde a maioria dos detentores de acções escolheu manter em vigor uma norma interna que, independentemente do mérito ou desmérito da OPA em si mesma, representa a negação da própria natureza de uma sociedade anónima e do funcionamento das regras do capitalismo, tal como são defendidas em teoria por todos os protagonistas. Mas o melhor de tudo, verdadeiro monumento à ironia do nosso particular capitalismo, foi ver os trabalhadores da PT a transformarem em herói popular o também comendador Berardo. Eis aqui alguém que, certamente dotado de inteligência e olho para o negócio que não se contesta, nunca, todavia, criou alguma coisa sua, que desse trabalho e riqueza ao país, limitando-se a entrar nas coisas criadas por outros, comprando e vendendo sem qualquer outra estratégia que não a do lucro pessoal; que fez uma imensa colecção privada de pintura para cuja guarda e manutenção conseguiu ‘privatizar’, e de borla, o CCB; e que, no caso da PT não vendeu, não porque tenha pensado no futuro dos seus trabalhadores, mas apenas porque não lhe deram o preço que queria. E sai dali como herói da classe operária!
PS: Confesso que sou bastante relapso a mudanças de hábitos de vida. Mas, quando as coisas mudam, embora esteja habituado a elas e não veja razões para a mudança, forço-me a acreditar que é tudo uma questão de tempo até me habituar. Esperei o tempo devido até me habituar ao novo ‘Público’: não consegui. Tal como vejo a mudança, a linha editorial do jornal foi sacrificada às ideias de um qualquer guru gráfico que, aliás e segundo li, acredita piamente na morte próxima dos jornais. E, acreditando, tratou de abreviar a morte do ‘Público’, transformando-o numa variante dos panfletos publicitários da Moviflor, no mais totalmente descaracterizado, incompreensível e pior. Para agravar a minha tristeza, também o Rádio Clube Português, a única rádio mais ou menos suportável, resolveu suicidar-se em directo, transformando-se numa estação de infatigável diarreia verbal, totalmente infrequentável. Tenho muita, muita pena.