Quinta-feira, 10 de Maio de 2007
Desigualdade
É inteiramente verdade que uma sociedade excessivamente desigual não é nem nunca poderá ser um lugar agradável para viver.
Aqui há uns anos, quando vinha no avião de Washington para Lisboa, comecei a falar com a passageira do lado. Descobri que era uma alta funcionária do governo moçambicano e que tinha estado a fazer um estágio no Banco Mundial. Agora, regressava a casa. Perguntei-lhe o que mais tinha chamado a sua atenção nos Estados Unidos. A resposta foi: a pobreza.
À primeira vista, esta resposta é desconcertante. No momento em que ocorreu este episódio Moçambique era considerado o país mais pobre do mundo e vinha em último lugar nos índices de desenvolvimento humano. Para quem viveu a maior parte da sua vida num país paupérrimo, os Estados Unidos deviam surpreender pela riqueza e nunca pela pobreza.
No entanto, numa segunda análise, a resposta da minha companheira de viagem pode ter algum sentido. Aquilo que nos choca em matéria de pobreza e riqueza é, mais do que a simples e desesperada pobreza, o convívio lado a lado entre a opulência e a miséria. Provavelmente, esse convívio é menos claro em Moçambique pelo simples facto de a grande maioria da população ser extremamente pobre. Mas ele é muito claro em Washington.
Mesmo o turista mais disciplinado não pode evitar, depois de visitar o Mall, com os seus óptimos museus e o ambiente descontraído e agradável das famílias em peregrinação republicana, percorrer mais um quarteirão ou dois e ver-se no meio da mais incrível miséria: casas delapidadas, lixo aos montes, drogados a deambular, pessoas estendidas nos passeios, etc.
Aquilo que chocou a minha interlocutora moçambicana foi o contraste entre a pobreza e a riqueza, mais do que a pobreza em si mesma. É inteiramente verdade que uma sociedade excessivamente desigual não é nem nunca poderá ser um lugar agradável para viver. Pode ter grandes belezas naturais e grandes potencialidades económicas, mas tem também elevadas taxas de criminalidade, uma insegurança e desconfiança permanente entre os cidadãos, grandes tensões psicológicas e um elevado potencial de instabilidade social e, em alguns casos, também política. Por isso não é assim tão agradável viver no Brasil ou na África do Sul, como deveria ser. E, também por isso, a vida nos Estados Unidos pode ser uma experiência desagradável.
Neste aspecto, a Europa é um lugar menos desesperado do que a América. Uma das razões – não a única, como é óbvio – pelas quais é mais agradável viver na Europa do que na América é a maior coesão social do velho continente. Mas também aqui há grandes diferenças. De acordo com o índice de Gini (que mede a desigualdade), Portugal é o país europeu mais desigual, enquanto que a República Checa, por exemplo, pertence ao grupo dos mais igualitários. A Suécia é o país mais igualitário de todos e a Dinamarca vem logo a seguir. No outro extremo, a Grã-Bretanha e a Itália são sociedades muito desiguais.
Muita gente hoje em dia considera que a desigualdade de rendimentos não é, em si mesma, um problema. Não creio que esta ideia deva ser levada a sério. A desigualdade é um problema por razões morais e também por razões pragmáticas.
Em termos morais, não é decente que a sociedade se organize esquecendo os que não foram bafejados pela lotaria social (porque não nasceram em berço de ouro), ou pela lotaria natural (porque não têm talentos ou qualidades especiais), ou pela simples boa sorte. Se acreditamos que os seres humanos são basicamente iguais em dignidade e direitos e que o Criador não estabeleceu nenhuma hierarquia natural “sub specie aeternitatis”, então teremos de convir que as instituições sociais devem contemplar uma correcção das desigualdades que o mercado livre inevitavelmente produz.
Em termos mais pragmáticos, a desigualdade representa um enorme potencial de insegurança para todos, de tensões psicológicas, de instabilidade social e política. Mesmo segundo critérios puramente utilitaristas, as grandes desigualdades acabam por contribuir para o decréscimo do bem-estar de todos, incluindo os ricos e os remediados. Por isso, os pragmáticos mais empedernidos devem admitir que, numa sociedade desigual, é da conveniência dos mais afortunados diminuir a desigualdade mediante algum esquema de compensações para os mais pobres (é o chamado princípio de Caldor-Hicks).