Quarta-feira, 16 de Maio de 2007
Factos e estratégias
Alguém consegue imaginar o que não se diria se o que se passa hoje fosse uma das "trapalhadas" do dr. Santana Lopes?
Arrisco-me a escrever este texto sem saber se, ontem à noite, o primeiro-ministro, como esperavam alguns patriotas, esclareceu todas as dúvidas sobre a sua licenciatura, acabando miraculosamente com a miserável polémica em que se viu envolvido nas últimas semanas. Na véspera da entrevista à RTP, esta radiosa possibilidade foi levada às últimas consequências, havendo mesmo quem se recusasse a dissertar sobre o assunto antes de ouvir as "explicações" que o primeiro-ministro estaria na disposição de fornecer ao país. E, de facto, se o grande erro estratégico do eng. Sócrates, de acordo com a tese actualmente em vigor, foi remeter-se a um incompreensível silêncio, nada garante que as suas primeiras declarações não se sobreponham aos factos, pondo um ponto final nesta desagradável matéria. Aparentemente é assim que se molda a realidade - ao sabor da estratégia seguida pelos políticos e da astúcia revelada pelos seus assessores.
O debate promovido, terça-feira, pela SIC Notícias foi a este título ilustrativo. Centrado na resposta do primeiro-ministro, nas razões do seu silêncio e nos erros da sua estratégia, o debate acabou por passar ao lado do essencial, remetendo para segundo plano os dados vindos a público que revelam a enorme "trapalhada" (para recuperar um termo que fez história nos tempos do dr. Santana Lopes) em que se transformou o percurso académico do eng. Sócrates. Como se viu pelas opiniões de alguns dos intervenientes, o problema está, antes de mais, na incompetência dos assessores e na ausência de uma boa política de comunicação: tivesse o primeiro-ministro atalhado o caso com umas simpatias avulsas e um pequeno lote de declarações inócuas e o assunto ter-se-ia resolvido, em dois tempos, sem tomar proporções que põem em causa o bom funcionamento do Governo. Quem havia de dizer que, ainda há dois meses, se assinalavam os dois anos de Governo com hagiografias do primeiro-ministro que o apresentavam como um político autoritário e determinado, especializado na arte da propaganda e no cálculo preciso das suas intervenções. Agora, o mesmo político, que alguns viam como o sucessor natural do prof. Cavaco Silva, ocupando o espaço natural do PSD, aparece, de repente, enfiado numa estratégia suicida, incapaz de perceber os sinais do país e a lógica da informação, sem conseguir travar a sua arrogância e a sua teimosia de sempre. O estado de graça de um político acaba invariavelmente assim, quando as qualidades do passado se transformam, de um dia para o outro, nos grandes defeitos do presente. O eng. Sócrates, por muito favoráveis que lhe sejam as sondagens, não foge ao destino que tem triturado todos os nossos primeiros-ministros.
Curiosamente, não parece ocorrer a ninguém que o "silêncio" do primeiro-ministro seja apenas fruto do impasse criado pela revelação de alguns factos que dificilmente se conseguem explicar. E que a "estratégia suicida", que tanto gostam de denunciar, traduza, antes de mais, a impossibilidade de esclarecer os contornos de um caso que, à medida que o tempo passa, vai adquirindo contornos cada vez mais inverosímeis. O primeiro-ministro pode apresentar-se na qualidade de vítima. Falar de campanhas obscuras. Apresentar diplomas. Juntar certificados. Remeter para a Universidade Independente. Desculpar-se com os "lapsos" da Assembleia da República. Desvalorizar as alterações do seu curriculum oficial. Descrever o MBA que não completou. Referir a pós-graduação que não possui. O que não pode é apagar os factos que vieram a público nas últimas semanas: o facto de o seu plano de equivalências não estar sequer assinado; o facto de ter feito quatro cadeiras com um único professor que, na altura, era adjunto do Governo a que pertencia; o facto de ter passado no exame de Inglês Técnico sem que o regente da cadeira lhe tenha posto, alguma vez, os olhos em cima; o facto de se dar como engenheiro civil quando a sua licenciatura nunca foi reconhecida pela Ordem dos Engenheiros; o facto de não se lembrar do nome de nenhum dos seus dois professores; ou seja, o facto indesmentível do seu currículo académico não revelar a exigência e o rigor que o seu Governo gosta de exigir a todos os portugueses - revelando simultaneamente a imensa fragilidade política de um primeiro-ministro provinciano que tinha na modernidade e na qualificação a sua imagem de marca.
Entre os inúmeros planos e as magníficas reformas com que a propaganda do Governo vai entretendo o país, houve logo quem considerasse que qualquer investigação sobre as habilitações académicas do primeiro-ministro não era mais do que um exemplo do tal "jornalismo de sarjeta" com que o ministro dos Assuntos Parlamentares tenciona democraticamente acabar. Só que este caso, na sua aparente menoridade, revela três factos que, em qualquer democracia, se podem tornar fatais. Antes de mais, mostra que a licenciatura do primeiro-ministro está longe de obedecer aos padrões de uma licenciatura normal. Em segundo lugar, prova que o primeiro-ministro se apresentou com títulos académicos que não possuía. E por último, confirma as fragilidades de uma comunicação social, que, apesar do esforço feito nos últimos dias, tem dificuldade em resistir à necessidade de controlo que se detecta no poder socialista. Alguém consegue imaginar o que não se diria se tudo isto que se passa com o eng. Sócrates fosse mais uma das "trapalhadas" que levaram à queda do dr. Santana Lopes?