Quarta-feira, 16 de Maio de 2007
O PSD no seu labirinto
OPSD aproveitou a campanha do referendo sobre a despenalização do aborto para lançar os trabalhos de revisão do seu programa. Não se pode dizer que tenha sido feliz o timing, mas a iniciativa merece louvor, até pela inequívoca qualidade dos que foram convidados para liderar um número muito elevado de áreas.
Ao longo de muitos anos de intervenção cívica nos media, escrevi largas dezenas de textos sobre o PSD e o seu enigma. Não será agora a altura de revisitar o que disse, mesmo que me pareça que em regra se não perdeu a actualidade. O PSD é um partido improvável que nasceu de uma conjuntura, de uma personalidade e de uma reacção. A conjuntura foi uma revolução contra uma ditadura de "direita", a personalidade foi Sá Carneiro e a reacção foi contra a esquerdização que alastrou na sociedade portuguesa e que teve o mais ridículo, ainda que significativo, exemplo na defesa pelo CDS de "um socialismo à portuguesa".
Por tudo isso, o então PPD era um partido da sociedade civil em revolta contra o Estado e a estatização, da província contra a Lisboa enlouquecida do "Poder Popular" e do "MFA-Conselho da Revolução", das classes médias em processo de ascensão social contra os instalados nas suas pequenas e médias sinecuras. Era também um partido que conseguia fazer a simbiose (a que chamei "liberalismo avançado") entre uma matriz social-cristã e um justicialismo populista "gaulliano", com uma pitada quase libertária e seguramente liberal a nível dos costumes.
Ao longo dos anos, como tantas vezes avisei, o PSD foi alterando a sua natureza e perdendo a alma. Tornou-se um partido conservador nos temas sociais, ocupado por carreiristas e infectado pelo controlo do aparelho de Estado, passando a construir as suas vitórias com uma lógica de campanha de supermercado, indo à procura da sua base de apoio nos sectores menos defensores de mudanças, reformas e riscos, os mais abundantes e mais dispostos a votar com a barriga. O PSD com Cavaco Silva conseguiu ser o que o PS tentara sem êxito, o natural partido de Governo, o Bloco Central de si mesmo.
Mas o mundo e Portugal foram mudando e os partidos seus concorrentes também. Num certo sentido - como os gregos do tempo clássico podiam dizer de Roma -, a vitória do projecto estratégico do PSD foi inequívoca. A tutela militar, a estatização da economia, a defesa do socialismo da produção, a tutela do PCP sobre a sociedade e do aparelho do PS sobre a economia, para apenas dar alguns exemplos, desapareceram. A bipolarização política concretizou-se.
Sinal muito impressivo para esta reflexão é uma sondagem do Figaro, a propósito das eleições presidenciais francesas. Pediu-se a eleitores de direita e de esquerda que elegessem os temas que consideram prioritários na campanha eleitoral. Grande consenso em relação ao desemprego e à melhoria do poder de compra, sinal claro de que deixou de ser por aí que passam as confrontações básicas e essenciais que definem o espaço do "político".
As confrontações mais claras estão noutro lado: para a esquerda a luta contra a pobreza, o ambiente, a integração das minorias. Para a direita a luta contra a insegurança nas ruas, os impostos, a imigração clandestina. Em França é por aí que passa a luta política. Que pensa o PSD destes temas? Julgo que tudo e o seu contrário, como é típico de um partido central com vocação maioritária.
Só que o PSD já não pode ser o "Centrão". Já não consegue mandar no CDS ou dispensá-lo. E vê o PS a recentrar-se e de novo a sonhar em tornar-se o partido natural de Governo, pela primeira vez com condições de sucesso, por ter sido capaz de "colonizar" o espaço do PSD. O PSD vive, pois, uma situação típica de tragédia.
Rever o programa neste contexto é, de facto, uma tarefa que faz todo o sentido. Mas que deve ser antecedida por opções estratégicas, sem o que tudo acabará num conjunto de banalidades e lugares-comuns "modernaços", com piscar de olhos em tantas direcções que só acentuarão o estrabismo político já existente. E essas opções exigem realismo e não ilusória e insensata megalomania, de querer tudo e o seu contrário, na esperança de que assim talvez se safem melhor nalgum lado.
As questões são aliás muito simples: quer o PSD ser um partido iluminista, liberal, aberto à modernidade, "grego"? Ou um partido conservador, prudente, sintonizado com os sectores que reagem contra as mudanças, "romano"? Quer o PSD ser uma alternativa ao PS ou quer tentar substituí-lo? Quer ser o líder de um bloco de direita ou um apoio essencial para um governo de esquerda moderada controlado pelo PS?
O que não pode ser é isso tudo ao mesmo tempo e para cada um de nós, consoante o sítio onde se está a falar, o meio usado para a comunicação ou a conjuntura política. O sonho messiânico de ser um catch all party teve no seu sucesso o sinal da sua morte. Nesse sentido Cavaco Silva matou o PSD, de que aliás se sabe que nunca gostou. E, além disso, o fim da União Soviética, o aparecimento de uma extrema-esquerda bon chic bon genre e a perda das ilusões socialistas no PS fazem com que o espaço da esquerda esteja estruturalmente ocupado entre 45 e 50 por cento.
Compreende-se assim muito bem a viragem à direita e ao conservadorismo que tem caracterizado o PSD e que o está a matar. O modelo sá-carneirista já não é possível sociologicamente e o modelo cavaquista já não é viável politicamente. O PSD pode reinventar-se num modelo "orleanista" ou num modelo "bonapartista" ou, pura e simplesmente, optar por um modelo "pós-gaullista" como Sarkozy está a fazer e, tudo indica, com sucesso provável.
O que não pode é pensar que sobrevive fugindo a essas opções e mascarando-se com uma revisão do programa cheio de palavras como "Internet", "info-exclusão", "desenvolvimento sustentável" e outras. Nada disso resolve a questão estratégica. E esta sempre antecede a política. Mesmo que se não queira. Sobretudo quando se não quer.