Terça-feira, 16 de Outubro de 2007
Ordem, custos e esbanjamento
Enfermidades, antes definidas em função da patologia, são agora redefinidas também em função dos hábitos pessoais e do estilo de vida.
José Manuel Moreira
O “Público” da última sexta-feira, talvez para evitar o apetite do caso Scolari ou o fastio do dos McCann, puxou para a primeira página o caso de um hospital que recusou “medicamento inovador a um doente com cancro”. Uma rejeição que terá levado o clínico a apresentar uma queixa pioneira à Ordem dos Médicos.
Queixa a que, segundo o presidente do conselho de oncologia, se seguirão outras porque a restrição de alguns fármacos inovadores “começa a generalizar-se”. Vai daí, Jorge Espírito Santo avança: “Não achamos aceitável que uma prescrição feita por um especialista seja rejeitada e que a comissão de farmácia tenha poder administrativo para isso”, acrescentando que a queixa “será dirimida nos órgãos próprios da OM” e poderá até conduzir a sanções aos médicos da comissão e ao director clínico.
Uma coisa surpreendente é que o doente não é notícia. O principal conflito parece ser entre quem quer receitar um tratamento que custa entre 2.500 a 3.000 euros mês e quem não quer pagar o fármaco em questão que prolonga a sobrevida.
“Num doente que não pode ser curado, temos que usar terapêuticas o menos tóxicas possíveis”, diz o tal dirigente da OM, que até é capaz de “admitir que é necessário haver limites nos gastos com medicamentos”. Mas até onde irão esses limites? Talvez o problema seja mesmo de equilíbrio, mas como o conseguir quando fomos educados – a começar pelos médicos – para a inconsciência dos custos: a saúde não tem preço! Lembram-se do ‘slogan’ universitário ainda hoje respeitado pelo CRUP: “não pagamos”? Ou da saúde como um direito sem mais!
Em 1991, o Ministro da Saúde da Nova Zelândia, quando anunciou o fim do sistema nacional de saúde, disse: “Eu não posso controlar a vida das pessoas, não posso obrigar as pessoas a viver vidas saudáveis, portanto não posso ser considerado responsável pelo seu estado de saúde. Contudo, o que eu tenho de controlar, em nome do Governo, é a despesa pública com os serviços de saúde.”
Palavras de Simon Upton que motivam os governos a falar do direito-dever, e até do controle e penalização dos comportamentos, à medida que enfermidades, antes definidas em função da patologia, passam a ser redefinidas também em função da conduta: hábitos pessoais e o estilo de vida de cada um, tidos agora como o principal substracto em que se fundam as suas raízes a maioria dos factores de risco que, crescendo, acabam por fazer aparecer as principais enfermidades responsáveis na actualidade pela morte das pessoas.
Daí a saga proibicionista de cada vez mais Governos, que sabem que a procura potencial de saúde é virtualmente ilimitada, e até o reforço da ideia de que conservar a saúde é uma responsabilidade pessoal e que recuperar a saúde, quando surge o estado de doença, deve ser também uma decisão pessoal quanto à forma e quanto aos meios.
Uma decisão difícil num sistema como o nosso em que o médico só receita, o doente só consume e quem paga é uma terceira parte: o Estado. Um Estado que, apesar de tudo, começa a ver que o problema já não é o de saber quem está a favor ou contra a redução das despesas, mas onde e como reduzir despesas.
Daí que Governos e cidadãos se disponham cada vez mais a fazer e a aceitar (gostem ou não) cortes orçamentais. As dívidas públicas (com a consequente sobrecarga dos contribuintes actuais e futuros) e outros factores, como o envelhecimento da população, não só impossibilitarão a manutenção como obrigarão à baixa das chamadas despesas sociais, nomeadamente na área da Saúde.
Quiçá esteja a chegar um tempo de grandes mudanças na nossa maneira utilitarista de pensar, em especial, sobre a vida e a morte. E de redescobrir que as pessoas vivem e morrem...
Infelizmente, uma visão irrealista da vida humana, que tudo faz depender de uma abordagem meramente técnica da saúde, continua a impedir-nos de ver por que tantos hospitais são antros de desumanidade, e de aproveitar as palavras do filósofo Júlio Fragata, S. J. quando na fase final de um cancro escrevia: “Na expectativa de tudo o que me pode acontecer, desejo evitar esbanjar aquilo que mais se esbanja neste mundo que é o sofrimento. Porque o sofrimento sem amor é um esbanjamento.”