Segunda-feira, 20 de Março de 2006
A grande trapalhada



Rui Ramos




A crise do Estado Social adquiriu a imprevisibilidade da bolsa. Sobe de manhã, desce à tarde e espera-se pelo fim do dia para saber onde ficámos.

Também eu gostaria de falar dos ‘cartoons’ dinamarqueses, explicar à classe média o que é o islamismo, e revelar ao povo o sentido da civilização ocidental. Só que vou ter de deixar a outros esse serviço educativo. Porque é necessário, mais uma vez, falar deste governo. A maioria do eng. Sócrates fez agora um ano, e desde então vimos quase tudo. Há uns tempos, tivemos um ministro a anunciar a bancarrota da segurança social, e outro ministro a desmenti-lo no dia seguinte. A semana passada foi ainda melhor. Não foram precisos dois ministros, bastou um. De manhã, o serviço de Saúde jazia no abismo, e era preciso que os utentes pagassem. À tarde, depois do almoço, o serviço de Saúde tinha melhorado consideravelmente, e a mudança do “modelo de financiamento” era apenas uma hipótese. Isto, dito pelo mesmo ministro, com o mesmo ar de seriedade, no mesmo dia. A crise do Estado Social adquiriu assim a imprevisibilidade dos movimentos da bolsa. Sobe de manhã, desce à tarde, e é preciso esperar pelo fim do dia para saber onde ficámos. Obviamente, o mal é nosso, que não compreendemos as subtilezas do ministro, e a culpa é dos jornalistas, que deturpam todos os recados.

E perante isto, é preciso repetir: não estão em causa pessoas, mas uma fórmula política. O eng. Sócrates propôe-se fazer “reformas” a partir da esquerda. Só que a esquerda não quer as reformas – incluindo a maior parte do PS. À direita, curiosamente, pouca gente percebeu ainda este problema, que é a chave de tudo. O PS escolheu o eng. Sócrates para ganhar eleições, mas nunca para fazer os cortes e mudanças, que ele, antes de chegar ao Governo, teve o cuidado de não anunciar ou até de negar. A vida governativa do eng. Sócrates está toda marcada por estes equívocos. Não pode fingir que há dinheiro, mas também não pode afastar-se da esquerda. Em suma, não consegue escolher: perante duas opções, adopta um bocadinho das duas. Por isso, ao mesmo tempo que corta a ração aos dependentes do Estado Social, alimenta sempre as miragens do desenvolvimento por intermédio do Estado. Diminui a burocracia por um lado, e cria subsídios cheios de alçapões burocráticos pelo outro. Com este governo, o Estado tornou-se um milagre da física: diminui e aumenta ao mesmo tempo.

Ultimamente, o Governo descobriu um meio simples para realizar esse milagre. O Estado português é o Estado mais centralizado da Europa. Ora, esta centralização permite uma coisa: concentração. Para justificar a concentração, há vários alibis, como a deslocação da população, ou as novas tecnologias. O eng. Sócrates percebeu assim que podia fazer poupanças através da simples retracção do dispositivo burocrático no território. Vai fechar 4000 escolas. Já tem na mira 68 postos de atendimento médico permanente. Gostaria de abolir freguesias. E por aí fora. Num país descentralizado, isto seria impossível. As instituições fariam parte das comunidades locais, e os serviços seriam geridos por elas. Em Portugal, não. Independentemente das leis e dos discursos, quase tudo o que há nas províncias é, na realidade, delegação do Governo central, com atribuições secundárias e poucos recursos próprios. Ou seja, por essas montanhas e planícies pouco há cuja existência, localização ou funcionamento não esteja à mercê de um decreto ou portaria assinados em Lisboa. Previsivelmente, a retirada do Estado vai acelerar a desertificação do interior. Quer escola primária a menos de uma hora de casa? Quer junta de freguesia? Se é novo, ainda está tempo de fazer a mala. Já tínhamos um jardim, agora vamos ter também um Estado à beira-mar plantado.

Poupa-se assim dinheiro? Certamente. Há outras justificações para a retracção estatal? Provavelmente. Mas então a questão seguinte é esta: para que servem as despesas, a que o eng. Sócrates chama “investimentos”, nomeadamente as célebres “SCUTS”, que este Governo nos obriga todos a pagar como um imposto contra a desertificação? Economiza-se em escolas, hospitais, freguesias, e um dia destes em tribunais e repartições de finanças. Mas continua a gastar-se em estradas, supostamente para fixar população em regiões onde depois se fecham escolas, hospitais, etc. – por não haver lá gente. Onde está a lógica? Mas não vale a pena perguntar nada a este Governo. Teríamos uma resposta de manhã, outra de tarde, e um desmentido no dia seguinte. Isto antigamente chamava-se “trapalhada”. E agora, chama-se o quê?



publicado por psylva às 08:20
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