Sexta-feira, 25 de Agosto de 2006
O número dos funcionários
Rui Ramos
Existe em Portugal uma associação cujo número exacto de membros é desconhecido, e que não se sabe se está a crescer ou a diminuir. Não é uma sociedade secreta. É o Estado português. A semana passada, o ministro das Finanças, falando no Parlamento durante o debate sobre a chamada "lei da mobilidade", revelou ao mundo profano que só a administração central empregaria o número muito detalhado de 580.291 pessoas. Falta saber quantos mais povoam os outros serviços do Estado. A publicação desses números complementares ficou prometido para esta semana. Saberemos finalmente quantos são, de facto, os empregados nas "administrações públicas"? É duvidoso. Porque, no momento em que nos era anunciado o primeiro resultado parcial da contagem de cabeças estatais, discutia-se já o resultado líquido dos movimentos de entradas e saídas de funcionários durante os primeiros seis meses deste ano, sem que ninguém concordasse acerca dos números. Segundo o Diário Económico, o número de funcionários ter-se-ia acrescentado em 10.166 entre Janeiro e Junho de 2006. O secretário de Estado da Administração Pública protestou logo. Invocou uma diminuição de 1,2 por cento da massa salarial, como "sinal de que o volume de trabalhadores está a diminuir". Esta discordância estatística mostra a dificuldade de delimitar o Estado em Portugal. Ninguém sabe, com certeza, onde começa e acaba, e se está a expandir-se ou a encolher. E basta este facto para revelar a vacuidade da política em Portugal. Sendo a redução do célebre "peso do Estado" uma das tais bandeiras que os grandes partidos do regime regularmente roubam um ao outro, conclui-se que os governos têm andado a "emagrecer" uma entidade cujo "peso", no que diz respeito ao número de funcionários, é incerto. Está assim garantida a impossibilidade de alguma vez, por esta via, avaliar com precisão a actividade reformadora deste e de qualquer governo.
O número de funcionários tem sido, no actual regime, um dos grandes temas do debate político. O mesmo já tinha acontecido durante a monarquia constitucional, na segunda metade do século XIX. A única diferença é que, há cem anos, era a esquerda quem exigia a redução dos funcionários, e a direita quem se mostrava mais benevolente para com o crescimento do Estado. A esquerda liberal e republicana do princípio do século XX ainda acreditava, em geral, na revolução por via de um "povo" autónomo e livre. Por isso, encarava o Estado, os seus funcionários e o seu exército, como um enleio a essa acção cívica e popular. A conversão da esquerda à burocracia mostra como, a pouco e pouco, o Estado foi absorvendo as esperanças de quase todos os políticos: entre os conservadores, foi sempre visto como o pilar de uma ordem que passou a contar cada vez mais com a polícia; entre os revolucionários, o Estado começou a ser imaginado como o instrumento de transformações sociais para que as quais se deixou de contar com a vontade do "povo".
Entretanto, os políticos encontraram outra utilidade para o Estado: o de gerar, enquanto empregador, a base de apoio que os líderes de vários regimes desistiram de procurar em movimentos "espontâneos" da chamada "sociedade civil". É o que sugerem os momentos em que houve maior aumento de funcionários. Entre 1919 e 1926, depois da má experiência da I Guerra Mundial (1914-1918), os republicanos tentaram consolidar o seu regime, promovendo a primeira duplicação do número de funcionários da administração central no século XX: de cerca de 16 mil para cerca de 30 mil, enquanto o número de direcções-gerais dos ministérios pulava de 22 para 39. Outra duplicação do mesmo género, num período curto, aconteceu outra vez no século XX. Foi entre 1976 e 1983, para criar bases de apoio à actual democracia: os serviços da administração central de 223 mil para 442 mil. O "número dos funcionários" não traduz apenas a expansão dos serviços públicos, mas a necessidade de criar, a partir de cima e rapidamente, as classes sociais pressupostas pelos projectos políticos de quem dominava o Estado.
Não é surpreendente que, tendo crescido assim, o Estado tenha em si próprio o objectivo da sua actividade. É o que se pode deduzir da importância das despesas com os funcionários e do tipo de trabalho desses funcionários. Segundo Medina Carreira, o Estado português é, na Europa, aquele em que os vencimentos do funcionalismo absorvem maior percentagem dos impostos (45 por cento) e o único que gasta mais em vencimentos do que em transferências sociais. Os funcionários não só consomem uma grande parte dos recursos, mas trabalham sobretudo para si próprios. Em 2004, o Conselho Coordenador do Sistema de Controlo Interno da Administração Financeira do Estado revelou que apenas 40 por cento da actividade dos funcionários consiste em serviços e assistência directa aos cidadãos e às empresas. Sessenta por cento da actividade dos funcionários não tem esses fins de utilidade social: 51 por cento é consumida em burocracia interna e 9 por cento é simplesmente supérflua. É este o segredo do Estado português. Não existe para servir a sociedade, mas constitui, em si mesmo, uma sociedade que os restantes portugueses estão obrigados a servir através dos impostos.
Aquilo a que o presente Governo tem chamado "reformas" consiste numa espécie de ovo de Colombo político. Outros governos obtiveram boas vontades expandindo o emprego público. O presente Governo aproveita o ressentimento geral contra o funcionalismo e as suas "regalias" para submeter e empobrecer os funcionários, oferecendo-lhes a manutenção dos seus postos de trabalho como contrapartida. Ganha pelos dois lados: multiplica os funcionários, ao mesmo tempo que dá ao resto do povo o gosto de assistir ao seu rebaixamento. É a receita mais esperta para manter tudo como está. Resta saber se é desta esperteza que o país precisa. Historiador