Quarta-feira, 1 de Dezembro de 2004
A importância das estatísticas
Durante muitos demasiados anos, os políticos e os jornalistas em Portugal achavam que usar números, como depreciativamente eram designadas as estatísticas, era um sinal de incapacidade de comunicar, quando não de incultura ou de insuportável mau gosto.
Durante muitos demasiados anos, os políticos e os jornalistas em Portugal achavam que usar "números", como depreciativamente eram designadas as estatísticas, era um sinal de incapacidade de comunicar, quando não de incultura ou de insuportável mau gosto.
Era uma atitude que tinha o seu paralelo no mau ensino da matemática, não obstante os excelentes exemplos de professores que sempre existiram neste domínio do conhecimento, mas que eram (são?), com demasiada frequência, tratados como uma elite dispensável.
É claro que a política económica nunca se fez sem números, mas estes não passavam de um aspecto subsidiário face às grandes declarações de princípios. Com a integração na UE e a abertura dos mercados financeiros, as coisas começaram a mudar e os jornalistas económicos ganharam fôlego.
Boa parte da opinião pública e dos políticos continuaram, porém, a considerar que as estatísticas não eram mais que uma forma de continuar a retórica por outros meios, com a vantagem tal como sucede na guerra relativamente à política destes serem mais poderosos e difíceis de pôr em causa.
Acontece, todavia, que mesmo as estatísticas mais simples, com que as pessoas lidam no dia-a-dia (como, por exemplo, os preços no consumidor ou as taxas de juro e de câmbio) exigem um tratamento complexo quando se trata de construir e interpretar indicadores que as representem.
Quando se passa para realidades complexas como as contas nacionais, que nos permitem avaliar o PIB e as suas variações, ou as contas públicas, que sintetizam a política e a execução orçamental as dificuldades técnicas são enormes e a exigência de competência e isenção por parte de quem as constrói e publica torna-se essencial.
A livre divulgação dos dados estatísticos e o seu comentário, sistemático e assíduo, por académicos e especialistas são igualmente condições mínimas necessárias à existência de estatísticas fiáveis e à formação de uma opinião pública com o sentido crítico indispensável para assegurar que elas assim permanecem.
Em Portugal, continua infelizmente a não se assistir à intervenção académica nestas matérias, o que tem muito a ver com critérios alegadamente científicos, mas também corporativos, de avaliação do trabalho académico. É óbvio que as universidades devem estimular a publicação de trabalhos teóricos, mas o conhecimento da realidade nacional e a capacidade de nela intervir através do comentário profissional e não instrumentalizado está consagrada nas grandes democracias ocidentais e, em particular, no Reino Unido e nos EUA onde, desde há mais de um século, tem tido origem quase toda a inovação teórica em matéria de economia.
Entre nós, a nível institucional, esse trabalho tem-se praticamente restringido ao Banco de Portugal e são, por isso, lamentáveis as recentes declarações do Ministro das Finanças a propósito da publicação do relatório sobre a situação da economia portuguesa em 2004, o texto que continua a merecer a maior credibilidade na matéria. É claro que o episódio não beliscou antes reforçou os créditos do Banco e do seu governador.
O que há a lamentar é o facto de os responsáveis políticos se dedicarem a criticar os mensageiros, em lugar de finalmente proporem medidas capazes de estimular a reestruturação do sector público e privado e de repor a competitividade, que permanece a condição essencial do crescimento de uma pequena economia no espaço europeu.
Este episódio teve, no entanto, um mérito: o de nos fornecer um excelente indicador para a separação entre os bons e os maus políticos a que Cavaco Silva nos incita. Os que quiserem fazer parte dos bons terão de reconhecer a importância de estatísticas e análises independentes. Um primeiro passo para o comprovar seria a reestruturação do INE na linha proposta pelos peritos canadianos e a concessão à instituição de meios que lhe permitam trabalhar com independência e qualidade e divulgar gratuitamente a informação necessária a análises fundamentadas sobre a economia e a sociedade portuguesas.
Um outro episódio recente ilustra os efeitos das más estatísticas (ou do mau uso que delas se faz). Na sequência da aprovação pelo Conselho de Ministros da transferência para a Caixa Geral de Aposentações (GGA) dos activos dos fundos de pensões da CGD, NAV, ANA e INCM, o Ministro das Finanças afirmou que os 1,3 a 1,4 mil milhões de euros a transferir do Fundo de Pensões da CGD se destinavam a cobrir responsabilidades do banco com as "pensões de pessoas que têm estatuto de funcionários públicos", admitidas na instituição até final de 1991.
É claro que, antes desta transferência, esse estatuto não era mais que um daqueles resíduos formais que a nossa burocracia acomoda. Agora, porém, o mesmo ministro que sempre defendeu a capitalização das pensões e o estabelecimento de limites máximos às pensões públicas, faz regressar essas pessoas, para efeitos de reformas, ao âmbito do funcionalismo (embora com direitos de bancários), passando o pagamento das suas pensões a ser da responsabilidade da CGA.
Será que, para além de todos os outros efeitos da operação, iremos observar um novo aumento dos encargos com o funcionalismo nas estatísticas das contas públicas?