Segunda-feira, 10 de Julho de 2006
Licenciados desempregados
É preciso cuidado ao falar da taxa de desemprego de recém-licenciados, pois a integração destes no mercado de trabalho é mais tardia.
Há alguns meses escrevi sobre o valor económico da educação, em particular do ensino superior (Expresso, 25 Fevereiro 2006). A tese central do artigo era que o valor económico pessoal do ensino superior, medido em termos salariais e de taxa de emprego, é muito positivo.
Nem todos concordam com a ideia. Alguns pais enviaram-me mensagens lamentando que os seus filhos, orgulhosos recém-licenciados, se mantêm desempregados. Um recente articulista neste jornal refere a taxa de desemprego dos licenciados, prova de que a economia continua a preferir mão-de-obra pouco escolarizada; mas não apresenta o valor da tal taxa de desemprego.
Como não sou especialista sobre o assunto, perguntei a um especialista. Eis o que descobri: Não dispomos de estatísticas actualizadas sobre a repartição do desemprego por níveis educativos; os valores mais recentes são os que apresento no artigo acima referido. Para relembrar: à data do inquérito do INE (2003), os portugueses com um curso superior ganhavam em média mais 63.1 por cento que os seus conterrâneos com ensino secundário apenas; e a taxa de desemprego dos que tinham curso superior era um ou dois pontos percentuais menor que a taxa de desemprego dos que tinham ensino secundário ou primário (veja-se o estudo do Professor Pedro Portugal no Boletim do Banco de Portugal de Março de 2004).
Mais: é preciso cuidado ao falar da taxa de desemprego de recém-licenciados, pois a integração destes no mercado de trabalho é mais tardia. Concretamente, os especialistas falam do fenómeno de wait unemployment: o sector público paga melhor que o sector privado, pelo que muitos recém-licenciados preferem esperar por um emprego na função pública do que entrar no mercado de trabalho em condições relativamente menos favoráveis. Não é que não tenham ofertas.
Muitos falam sobre a calamidade do desemprego dos licenciados, mas poucos fornecem estatísticas que substanciem tal lamento; e as estatísticas que temos indicam exactamente o contrário.
Nota: A minha recente coluna neste jornal, propondo a fusão do Benfica, Sporting e Porto, trouxe-me variados comentários de surpresa, discordância, quase até invectiva pessoal. Pensei que fosse clara a intenção satírica da peça, cujas recomendações incluem a construção de um novo estádio (!) para o mega-clube a criar. Errei: com o futebol não se brinca. Aqui ficam as minhas desculpas. E para que a mensagem fique clara, aqui vai, desta vez sem recursos metafóricos: discordo da política industrial dos campeões nacionais a melhor política industrial é a política da concorrência.
Nós precisamos de duas coisas: uma sociedade mais livre e mais favorável à iniciativa privada e boas instituições de justiça social.
O Roteiro para a Inclusão, lançado pelo Presidente da República, é uma boa oportunidade para o país tomar conhecimento daquilo que é feito nesse capítulo, quer pelo Estado, quer pela sociedade civil. Mas é também uma excelente oportunidade para pensar - e só pensando bem podemos agir melhor.
A ideia de inclusão é a de que nenhum indivíduo deve ficar à margem por incapacidade do sistema social e dos próprios actores desse sistema, isto é, de todos nós. É claro que alguns indivíduos podem ficar à margem por escolha própria. Mas são casos muito raros. Em geral, mesmo aquela marginalização que parece voluntária é produto de uma exclusão social que foi sendo interiorizada ao longo da vida.
A inclusão pode ser operada por duas vias fundamentais: a via da justiça social e a via assistencial. Grande parte das pessoas confunde facilmente uma coisa com a outra. No entanto, elas são muito diferentes.
A inclusão pela justiça social tem a ver com aquilo a que costumamos chamar igualdade de oportunidades, assim como com a distribuição dos rendimentos e da riqueza. Mas ela também requer a existência de uma economia de mercado. Por seu turno, a inclusão pela assistência tem a ver com o sistema de seguros de risco social que o Estado cria, mas também com a acção da sociedade civil no apoio àqueles que, apesar de tudo, caem fora da rede assistencial pública. Vejamos agora melhor como estas duas formas de inclusão se distinguem e articulam.
A inclusão pela justiça social depende de determinados sistemas de regras ou instituições sociais que enquadram a nossa vida em sociedade. De entre essas instituições, as mais importantes são o sistema fiscal, a definição legal dos direitos reais, o sistema educativo e o sistema de cuidados de saúde. Estes sistemas permitem que quem nasceu pobre, ou até com especiais desvantagens físicas ou psíquicas, possa aceder a um número de oportunidades que a inexistência destes sistemas tornaria impossível. Estes sistemas permitem ainda, quando funcionam bem, diminuir as grandes disparidades de rendimento e de riqueza produzidas pela reprodução da desigualdade ao longo das gerações.
A inclusão pela justiça está também dependente da existência de mercados livres. Uma economia de mercado operante é uma condição básica da justiça. Por um lado, porque a economia de mercado é a única que funciona. Por outro lado, porque a liberdade económica que o mercado exige e proporciona é ela própria um primeiro passo no sentido da inclusão sistémica gerada por instituições justas. Em alguns aspectos, a liberdade económica é mesmo a mais inclusiva de todas estas instituições.
A inclusão pela assistência é outra coisa. Ela depende de uma rede de protecção dos riscos sociais, como a doença, a invalidez, o desemprego, etc. A maior parte das pessoas pensa que, quando se fala de justiça social, estamos a pensar neste tipo de prestações e que mais justiça social corresponde a um aumento deste tipo de ajudas e do seu montante. Isso é um erro.
A assistência providenciada pelo Estado - ou, quando este falha, pela caridade privada - é sem dúvida importante e não deve deixar de existir. Mas a multiplicação dos subsídios deste tipo não é uma solução para os problemas estruturais da injustiça. Assim, por exemplo, o rendimento mínimo criado em Portugal é uma medida assistencial que diminuiu a penosidade da pobreza para algumas famílias, mas não fez diminuir as taxas de pobreza. Em termos de justiça social o seu contributo é quase nulo.
Quando a inclusão pela justiça funciona bem, a sociedade é formada por cidadãos qualificados e independentes. Eles raramente precisarão que o Estado ou as organizações caritativas cuidem deles. Pelo contrário, quando, por exemplo, o sistema fiscal é tão ineficiente que obriga ao fim do mais justo dos impostos (o imposto sucessório) por incapacidade de cobrança, ou quando o sistema educativo é tão mau que leva à fuga dos filhos da classe média para escolas privadas e à consequente degradação das escolas públicas, então estão criadas as condições para a multiplicação futura dos mecanismos assistenciais.
É claro que uma sociedade decente e com as nossas tradições humanistas não pode tolerar a exclusão e deve assistir, por mecanismos públicos ou privados, aqueles que necessitam. Mas, como estratégia de longo prazo, não deve estar aí a nossa aposta. Nós precisamos de duas coisas: uma sociedade mais livre e mais favorável à iniciativa privada e boas instituições de justiça social. Se tivermos estas duas coisas, o braço assistencial poderá ser bem menos longo do que aquilo que é hoje em dia. Ele terá sido substituido pela prosperidade que os indivíduos ganham para si mesmos e pelos reequilíbrios espontâneos produzidos pelo funcionamento de instituições justas ao longo do tempo.
Fusões e interesse nacional
Não se pede que o Governo tome todas as decisões com referência aos valores da concorrência; mas é razoável esperar que as decisões sejam justificadas.
O caso da aquisição da AEA pela Brisa é importante em si; mas é ainda mais importante pelo precedente que representa.
Ninguém põe em causa a legalidade da decisão do ministro da Economia. E ninguém contesta que a concorrência e o bem-estar dos consumidores não são os únicos valores relevantes. O que choca é o contraste na forma como as posições são argumentadas e fundamentadas.
A perspectiva da Autoridade da Concorrência é necessariamente parcial há mais interesses a considerar para além do interesse do consumidor. E como qualquer instituição humana, há que esperar uma margem de erro fusões que deveriam ser permitidas e são bloqueadas; e fusões que deveriam ser bloqueadas e vêem a luz verde.
Não obstante estas limitações, as recomendações da AdC são lógicas e coerentes com o estudo sério e rigoroso de cada caso. Oxalá o mesmo se pudesse dizer das decisões governamentais sobre fusões e aquisições. Infelizmente, o que temos visto está muito longe desse ideal: a defesa dos campeões nacionais é mais ideológica do que racional.
A justificação mais frequente para a grande empresa portuguesa e aqui incluo vários artigos de opinião que tenho lido é que cada vez mais o mercado relevante é o mercado europeu, pelo que a concentração no espaço português não levanta problemas. Isso é verdade nalguns sectores, mas certamente não nas auto-estradas. Dizer que o mercado relevante é a Europa é como dizer que se os preços das portagens em Portugal forem suficientemente baixos então os condutores franceses começarão a preferir as nossas auto-estradas.
A dimensão europeia da concorrência também pode ser entendida do lado da oferta. Tal como o recente episódio da Abertis e Autostrade sugere, existe alguma fome por aquisições internacionais neste e noutros sectores. Para que a Brisa se torne num player de dimensão e extensão europeia, é preciso que compre empresas fora de Portugal. Nisto estamos de acordo. Mas como é que adquirir empresas rivais em Portugal facilita este processo de expansão internacional?
Mas há mais: porquê esta insistência numa Brisa de dimensão europeia? O Governo e vários comentadores sugerem que uma Brisa pequena será mais facilmente adquirida por uma empresa estrangeira, o que seria problemático para Portugal. Chegamos então a uma das inconsistências do argumento a favor da fusão: quando a Autoridade da Concorrência insiste que a concentração prejudica os utentes, dizem que a regulação é tão rigorosa que torna desnecessária a concorrência entre operadores; mas quando se fala do perigo do papão espanhol que é, afinal, o que todos temem, mesmo que não o digam já a regulação não tem valor algum.
Em suma, não se pede que o Governo tome todas as decisões com referência aos valores da concorrência; mas é razoável esperar que as decisões sejam devidamente justificadas. E simplesmente invocar o interesse nacional não chega.
O grande esquema
Entre as greves recorrentes e as faltas constantes de muitos professores, os alunos mal notam menos um dia de aulas.
No livro The Scheme for Full Employment (Picador: 2003), o escritor Magnus Mills conta a história de um brilhante esquema para pôr fim ao desemprego.
O primeiro passo consiste em criar carrinhas compactas para transporte de mercadorias. Elas devem ser facilmente reconhecíveis e desmontáveis em várias peças de pequena dimensão. De seguida, constroem-se instalações espalhadas por diferentes regiões, separadas por menos de duas horas de condução. Em cada uma destas bases, existe uma oficina, um armazém, uma garagem, assim como espaço para escritórios e cantinas. O último passo é contratar os trabalhadores: mecânicos especializados na manutenção dos veículos e na sua montagem e desmontagem; armazenistas que descarregam as cargas e gerem o stock; condutores para dirigir as carrinhas; supervisores que gerem as operações; e outros como cozinheiros, pessoal de limpeza, quem vigie o portão, etc.
O esquema está montado. O trabalho consiste em carregar mercadorias de uma base para outra, de forma a garantir que todas têm sempre os stocks a um nível adequado. E o que são estas mercadorias? São caixas com peças sobresselentes das próprias carrinhas. O esquema é brilhante porque é auto-suficiente: quanto mais as peças são movidas entre bases, maior a probabilidade de avarias, que por sua vez justificam mais viagens para buscar peças. Para além disso, o esquema pode acolher quase qualquer pessoa que procure emprego.
Claro que há o pormenor incómodo de como pagar salários quando não há receitas. Mas afinal para isso é que servem os contribuintes e os impostos! O esquema é um grande desígnio nacional, uma instituição nobre de que o país se pode orgulhar. O papel dos supervisores é garantir esta boa imagem do esquema. Trabalha-se, como noutras profissões, das 9 às 5, e os condutores não devem ter pressa de forma a que se comportem de forma cortês na estrada. As carrinhas reconhecíveis e os seus condutores afáveis e sempre atarefados de um lado para o outro tornam-se rapidamente respeitados por todos.
Na novela de Mills, depois de anos de operação, surgem problemas no esquema. Alguns trabalhadores gostam de sair mais cedo e há supervisores permissivos. Outro grupo, os puristas, receia que estas saídas exponham a inutilidade do esquema e comprometam a credibilidade dos seus trabalhadores. O conflito entre os dois grupos vai escalando até ao ponto em que um dos lados declara greve. Depois de três semanas de paralisação, os dois grupos acabam por negociar uma solução de compromisso. Todos terão o direito a sair 10 ou 15 minutos mais cedo, e por vezes (mas só raramente) poderão sair uma ou duas horas antes das 5.
Por esta altura, no entanto, os danos para o esquema são irreparáveis. Enquanto as operações estiveram paradas, os outros cidadãos notaram que não se sentiu falta de nada. Os trabalhadores do esquema começaram a ser vistos como preguiçosos e egoístas. A atenção da imprensa expôs o custo do esquema para cada contribuinte. Uma inspecção de rotina é escrutinada pela opinião pública e descobre falhas graves. Pouco tempo depois, o esquema é encerrado.
Os protestos do último ano na função pública em Portugal fizeram-me recordar este livro. No sector da justiça, entre magistrados, pessoal dos tribunais, e funcionários do Ministério da Justiça, estão muitas pessoas que passam grande parte do seu tempo a trocar processos, recursos, e outros papéis entre si. Apesar do prestígio social de que gozam e dos confortáveis salários e horários, alguns destes trabalhadores fizeram greve no seguimento de uma disputa sobre o direito a trabalhar menos. Essa greve praticamente não fez mossa no dia-a-dia de ninguém poucos repararam que os seus processos judiciais vão demorar uma década mais alguns dias em vez de apenas uma década.
Agora, é vez dos professores. Estes convocaram uma greve estrategicamente colocada para lhes permitir uma ponte. Entre as greves recorrentes e as faltas constantes de muitos professores, os alunos mal notam menos um dia de aulas. Para além disso, vários professores afirmaram publicamente que os pais sao incapazes de perceber o seu brilhante esquema e de os avaliar.
Felizmente que o livro de Mills é de ficção. Na vida real, esquemas tão brilhantes como o de Mills certamente nunca terão um fim. ____
Ecos da História
Somos uma raça decaída por ter rejeitado o espírito moderno: regenerar-nos-emos abraçando francamente esse espírito. [...] (A. de Quental, 1871).
Por um lado... Ribeiro Macedo, diplomata (1618-1680): A nação portuguesa não cabendo nos seus limites saiu a descobrir o mundo e achámos das mais férteis e ricas partes do mundo... nelas temos colónias... que compram roupas e manufacturas da Europa... donde é dos estrangeiros a utilidade das nossas descobertas sendo nós uns feitores das nações europeias... só a introdução da indústria fará com que sejamos senhores úteis do Brasil...
Agravado por uma classe dirigente (séc. 19) de estirpe não boa... com eles tudo é indefinido... pouca ambição, pouco espírito de luta (Infanta D. Maria Teresa, primogénita de D. Carlota e D. João). A união das classes dirigentes e da Inquisição fez de Portugal um reino da estupidez (F. Melo Franco - séc. 18/19).
Donde (Antero de Quental, Conferências do Casino em 1871): Nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo tão pobre. E sobre a macrocefalia portuguesa: Lisboa não foi Portugal até meados do século 14, mas desde que a vida ultramarina nos absorveu tudo, Portugal sempre produziu pouco, dependendo das colónias, com a cabeça demasiado grande para corpo tão pequeno... Portugal é Lisboa e o resto é paisagem... Lisboa absorveu Portugal... uma cabeça de gigante num corpo de pigmeu... (Oliveira Martins, 1989).
Que fazem os portugueses? Vivem do Estado... desde os 1os exames, a mocidade vê nele o seu repouso e garantia de tranquilidade... a própria indústria faz-se proteccionar do Estado... o qual é a ociosidade organizada... também a ciência vive do Estado... e este é a ocupação natural das mediocridades (Eça de Queiroz).
Outra consequência é o complexo de inferioridade que leva a que os portugueses são excessivamente orgulhosos e presumidos... e aparentam grande magnificiência embora sejam completamente ignorantes (César Saussure, suíço, após visitar Portugal). E em consequência também desse complexo, a maledicência: Cifuentes, embaixador espanhol em Roma (séc. 16): os portugueses quando interrogados sobre um compatriota, por mais eminente que seja, sempre o aniquilam; já os castelhanos, perguntados sobre outro castelhano, mesmo vulgar, sempre o enaltecem. Porque será?. Resposta de D. H. de Meneses, embaixador português: Porque ambos mentem.
Por outro lado: Antes de os conhecer imaginava que os portugueses dificilmente compreendiam os trabalhos mecânicos e que passavam os dias numa moleza decrépita sem disposição para o trabalho. Nada mais injusto. Excepto as classes dirigentes e os serviços inúteis, todo o resto da nação é trabalhadora e habilidosa (C. Ruders, visitante sueco, séc. 19).
Em síntese: Somos uma raça decaída por ter rejeitado o espírito moderno: regenerar-nos-emos abraçando francamente esse espírito. O seu nome é revolução, não pela guerra mas pela verdadeira liberdade (A. de Quental, 1871).
Até porque, lutar contra a mudança é não só reaccionário, como niilista: Dizer que uma coisa é má por ser nova é dizer que todas são más, uma vez que as velhas já foram novas no seu princípio (Hipólito Costa, 1774-1823).
A liga dos bastonários
Os bastonários das ordens profissionais do sector da saúde (médicos, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros) publicaram uma arrebatada "carta aberta" num semanário, denunciando uma alegada ofensiva mercantilista no sector, estando em curso uma "diabolização das ordens" e um "ataque às profissões da saúde". A carta é, porém, despropositada, e a mensagem, errada.
Na origem desta inédita iniciativa conjunta dos bastonários estão claramente as posições da Autoridade da Concorrência, tanto em relação à liberalização das farmácias e do comércio de medicamentos, como, especialmente, em relação à aplicação de pesadas sanções pecuniárias às ordens dos médicos e dos dentistas, por causa da fixação de preços das consultas e dos tratamentos na medicina liberal. Os bastonários vêem nessas posições evidentes sintomas de uma concepção dos cuidados de saúde como "uma mera actividade económica, apenas sujeita às regras do mercado" e de um movimento tendente à desregulação das respectivas profissões.
Há aqui uma distorção inaceitável e uma ilação deslocada. Para começar, é evidente que, quando a Autoridade da Concorrência sanciona a fixação de remunerações e outras práticas lesivas da concorrência na prestação de serviços, ela limita-se a negar às ordens profissionais o exercício de funções de regulação económica, sem todavia pôr em causa as demais funções de regulação profissional e deontológica que caracterizam tradicionalmente as ordens. Por isso mesmo, a condenação de tais restrições à concorrência não põe em causa o papel das ordens nem significa nenhum ataque às profissões em si mesmas.
Ao defender a concorrência nas profissões liberais, a Autoridade da Concorrência limita-se a aplicar o Tratado da Comunidade Europeia, a jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu e a lei nacional da concorrência. Desde há muito que se entende que as regras da concorrência não se aplicam somente ao sector dos bens, mas também à prestação dos serviços, incluindo os serviços profissionais. As práticas restritivas tanto podem decorrer de acordos entre agentes económicos, como de decisões das suas associações. Ora, as ordens profissionais são indubitavelmente associações de prestadores de serviços, que incorrem em violação das leis da concorrência quando decidem, por exemplo, determinar ou limitar a formação dos respectivos preços.
Sucede, aliás, que os estatutos legais das ordens profissionais não lhes conferem poderes em matéria de regulação dos preços. Ora, tratando-se de organismos públicos, as ordens só têm as atribuições que lhes forem confiadas por lei. Na falta desta, como é o caso, as restrições à liberdade negocial em matéria de preços estão desprovidas de fundamento legal, sendo portanto ilegais, mesmo que não estivesse em causa a violação das leis da concorrência. Os cuidados de saúde em regime liberal podem não ser somente mercadorias, mas são também serviços disponibilizados no mercado, aliás bem caros entre nós, quando comparados com outros países mais ricos. Se fizesse falta uma prova, ela está hoje na crescente percentagem de clínicos e outros profissionais de saúde que adoptam a forma de sociedade comercial, muitas vezes uninominal, por razões puramente argentárias, como as vantagens fiscais, ou outras ainda menos desinteressadas.
O perigo para o conceito e o prestígio das profissões da saúde e para as respectivas ordens profissionais não advém, portanto, da alegada perspectiva mercantilista e "neoliberal" da Autoridade da Concorrência, mas sim da tendência atávica das ordens para preferirem arrogar-se tarefas que não lhes devem pertencer (concretamente, a regulação económica), em prejuízo das missões legais para que foram criadas, nomeadamente a observância dos deveres deontológicos e profissionais.
Há uma tensão inata nas ordens profissionais entre, por um lado, as suas funções públicas - que devem ser pautadas pelo interesse público e pelos direitos dos utentes - e, por outro lado, as suas funções de representação e de defesa dos interesses privativos dos seus membros. Muitas vezes prevalecem as segundas sobre as primeiras, passando as ordens a ser não mais do que sindicatos oficiais, com os privilégios do poder público, de que as demais profissões não beneficiam.
Existem três desvios típicos das ordens profissionais quanto às suas funções. Primeiro, há uma tendência larvar para a defesa de posições malthusianas no acesso à profissão, que consiste no racionamento na entrada de novos profissionais. O que sucedeu em Portugal durante muitos anos, com as limitações à entrada nos cursos de Medicina, de resto ainda bem activas, há-de ficar na história como um "exemplo de escola". A segunda tendência é a ampliação desmesurada dos chamados "actos próprios" da profissão, de modo a expandir o exclusivo profissional, muitas vezes à custa das profissões confinantes. A terceira tendência consiste nas já referidas restrições à concorrência, que aliás não se limitam à fixação de preços ou medidas afins.
O zelo das ordens na promoção dos interesses profissionais colectivos só tem paralelo no desmazelo ou desinteresse com que várias delas encaram as missões públicas de que estão encarregadas pelo Estado, nomeadamente o respeito pelos deveres deontológicos e das legis artis por parte dos seus membros. Custa a aceitar, por exemplo, a leniência com que desde há muito a Ordem dos Médicos encara a emissão generalizada de atestados médicos de favor ou as equívocas relações de muitos médicos com os laboratórios farmacêuticos (de que o "turismo médico" constitui a face menos nociva...). A escassez de processos e de sanções disciplinares em várias ordens profissionais são um dos elementos que revelam o défice no desempenho da sua função supervisora.
As ordens profissionais não são uma solução universal para a regulação dos serviços profissionais, nem sequer para a sua auto-regulação, sendo por exemplo desconhecidas no mundo anglo-saxónico. A transacção em que assentam supõe que elas não sacrificam excessivamente o interesse público aos interesses corporativos. E para serem organismos públicos não podem adoptar posições de tipo "sindical" ou mais próprias de grupos de interesse privados.
Em vez de se colocarem na descabida situação de incompreendidas e perseguidas como supostos "bodes expiatórios", as ordens profissionais, tanto as da saúde como as demais, deveriam reflectir seriamente sobre a sua serventia na actualidade, não para tentar impedir a criação de um mercado de serviços profissionais, que a UE incentiva, mas sim para desempenhar com renovada exigência e responsabilidade as suas funções próprias de superintendência e de disciplina profissional, nesse novo contexto de massificação e de concorrência. Se o não fizerem, só têm de se queixar de si mesmas.