Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006
Para uma discussão séria
Com contas individuais, promove-se a liberdade individual. Cada um investe as suas poupanças para a reforma como quiser.
A reforma da segurança social está em cima da mesa. De um lado, o Governo propõe que se mantenha, com ajustamentos, o sistema actual em que os trabalhadores hoje pagam as reformas dos aposentados hoje. Do outro lado, os reformadores propõem um novo sistema no qual as contribuições para a Segurança Social hoje são colocadas em contas individuais de poupança para sustentar as reformas no futuro.
O que me surpreende no debate é o domínio dos reformadores. O incauto que lê a imprensa ou os ‘blogues’ conclui que as contas individuais são uma prescrição básica de boa ciência económica. Não são. Ao contrário da defesa do comércio livre entre nações ou do benefício da concorrência, não se encontra esta lição nos manuais de economia.
Isto traz dois perigos. Por um lado, a discussão corre o risco de ser menos séria, com opções ideológicas mascaradas de argumentos económicos. Por outro lado, os reformadores caem na tentação de usar falácias disfarçadas. George Stigler conta um episódio em que, num debate com um adversário menos esclarecido, usou argumentos falaciosos. O seu amigo, Milton Friedman, ficou furioso. Mesmo que Stigler tenha ganho o debate, ao usar argumentos falsos, enfraqueceu a sua causa.
Comecemos pelas falácias no debate actual. Em primeiro lugar, não é verdade que o sistema actual seja insustentável. Se se indexar a idade da reforma à esperança de vida, penalizar as reformas antecipadas, e deixar de se prometer reformas milionárias sem receitas que as justifiquem, o sistema pode durar muitos anos. Estas mudanças podem ser feitas de uma forma sistemática com leis simples e fórmulas transparentes sem alterações de fundo no sistema.
Em segundo lugar, não é verdade que não existam custos de transição. Quando a Segurança Social surgiu, fez-se a opção política de pagar reformas àqueles que nunca tinham feito descontos. Se se acabar com o sistema actual mudando para contas individuais, a geração presente, que descontou mas nunca receberá, terá efectivamente pago a dívida da geração inicial. É este o custo de transição. Pode-se emitir dívida pública para partilhar esta despesa entre a geração presente e as gerações futuras. Mas alguém tem de pagar a dívida. (Esta dívida está escondida no sistema actual mas também esta lá.)
Em terceiro lugar, não é verdade que seja preciso usar as contribuições para a Segurança Social para criar contas individuais de poupança. Nos EUA, o sistema de Segurança Social é tal e qual como em Portugal, mas com um limite máximo nas contribuições anuais e um tecto nas reformas pagas. Quem ganha mais pode, com as suas poupanças e apenas se quiser, pôr mais algum de lado para quando se reformar. O Estado decide subsidiar estas contas através de isenção de impostos, tal como faziam os saudosos PPR em Portugal. Estas contas não são incompatíveis com um sistema de base como o actual.
Passemos às verdadeiras diferenças entre os dois sistemas. Com contas individuais, promove-se a liberdade individual. Cada um investe as suas poupanças para a reforma como quiser. A população investe na economia directamente, e deixa de depender das transferências do Estado para a sua reforma.
No sistema actual, promove-se a partilha intergeracional de riscos. Se uma geração se sacrifica em guerras conquistando a liberdade para a geração futura à custa de menores rendimentos, conta com a geração futura para lhe pagar a reforma. Se outra geração tem a felicidade de viver durante um tempo de prosperidade então vai pagar mais do que alguma vez virá a receber. Os riscos que cada geração enfrenta são partilhados por todos.
Duas outras diferenças podem ou não estar presentes. No sistema de contas individuais, se estas criam nas pessoas melhor percepção de que é preciso poupar para a reforma, então talvez aumentem as poupanças e o crescimento económico. Por sua vez, no sistema actual, mais facilmente se protegem viúvos e incapacitados, se não existirem outros mecanismos de protecção social.
No debate sobre a segurança social, os economistas podem ajudar no desenho de qualquer um dos dois sistemas de forma a torná-los mais eficientes. Mas entre os dois sistemas a escolha é política e ideológica no sentido mais clássico destes termos: é uma escolha entre liberdade ou segurança.
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A patética actividade de promoção
Agora, que se aproxima o Orçamento do Estado, é bom saber que existe uma actividade que, mais que todas, absorve os recursos nacionais: a promoção. A maioria dos institutos públicos, repartições e subsídios destinam-se apenas à promoção. Nada suga tanto o dinheiro dos nossos impostos como ela.
Que é que se promove? Isso é fácil: tudo. Promove-se o emprego, o crescimento e a tecnologia. Mas também se promovem a renda de bilros, a plantação de beterrabas e a vida sexual saudável. Incentivam-se o vale do Ave, o teatro de intervenção e a condição feminina. Apoiam--se as energias renováveis, o lince da Malcata, a cultura moçárabe e a alimentação racional. As promoções mais importantes são as mais abstractas: qualidade, paz, bem-estar.
Como é que se promovem essas coisas? Isso também é fácil: gastando milhões. Muitos milhões, mesmo. Se fossem eliminadas as despesas de promoção, não só se eliminava o défice, mas dezenas de organismos e muitos ministérios também seriam totalmente eli- minados.
Mas como é que esses milhões promovem essas coisas? Bem, há muitas maneiras. Esferográficas, porta-chaves, blocos, bonés e camisolas são das mais frequentes. Ultimamente os tapetes para rato de computador tornaram-se muito populares. Nunca sentiram a protecção civil ou os cuidados paliativos a serem promovidos ao esfregarem o rato no tapete? Nunca viram o enorme incentivo que dão à camada de ozono ou ao turismo de qualidade quando penduram as chaves nas fitas coloridas?
Outra forma muito utilizada são os estudos. Faz-se uma comissão que conduz um estudo, sempre vasto e profundo, da terrível situação actual. No final há uma sessão pública, que corre sempre muito bem, e o estudo é cuidadosamente guardado em gavetas especiais que há nos gabinetes do Estado para esse efeito. Um dia, alguns desses estudos vão mesmo servir de base a novos estudos de novas comissões.
Mas a melhor forma de promover qualquer coisa é realizar colóquios, encontros, simpósios e certames. Ah! E também é bom publicar revistas. Muitas revistas, boletins, sites e newsletters, com textos que ninguém lê e fotografias dos promotores. Aí é que as coisas são mesmo promovidas! Os reputados especialistas escrevem ou dizem as suas comunicações e sente-se logo o insucesso escolar a retroceder, a violência doméstica a acalmar, as doenças cardíacas a melhorarem. Ultimamente, o colóquio atingiu a forma definitiva de promoção: o convidado estrangeiro. Fica um pouco mais caro, mas vale mesmo a pena. É sempre um homem sorridente com casaco aos quadrados e gravata de malha, ou uma mulher alta e forte com vestido escuro e sapatos práticos. Então é que o alcoolismo se cura, as zonas degradadas florescem, a sociedade fica igualitária, justa, dinâmica, feliz!
A promoção tem uma outra característica importante: quanto mais se faz mais tem de ser feita. Após anos de esforços e grandes sucessos na promoção do meio ambiente, da qualidade dos transportes e da igualdade de géneros, espíritos tacanhos esperariam que se gastasse um pouco menos nisso. Mas não. Gasta-se cada vez mais, porque é urgente promover essas coisas.
Alguns maldosos acham até que esta coisa da promoção é um enorme desperdício ou, pior, uma forma de uma multidão de parasitas viver à custa do dinheiro dos pobres, fingindo revolver problemas insolúveis. Mas esses não entendem a questão. É verdade que grande parte da promoção é só tralhas e tretas que nada solucionam, que repetem sempre os mesmos chavões a custos explosivos. Mas estas críticas esquecem o centro da questão: o drama da impotência.
Vivemos num tempo em que toda a gente acha que o Estado serve para resolver todos os problemas. Para tudo tem de haver uma política, lei, programa. Depois, como a vida real é dificil, e quem realmente lida com ela são as pessoas e a sociedade, os poderes públicos enfrentam a terrível situação de serem responsáveis por algo que lhes escapa. Alguns têm a ilusão de poder, outros já perceberam a tolice da circunstância, mas todos serão crucificados se não fizerem nada. Daí esta intensa actividade de promoção. No final, os problemas ficam na mesma, mas gastou-se muito dinheiro, os responsáveis mostraram-se dinâmicos e interessados e o público ficou consolado. E, quem sabe, até pode ser que as pessoas acabem, finalmente, por tratar do problema em suas casas. Talvez se decidam a fazer o que devem, em vez de descarregarem as culpas sobre o pobre Estado.
O funcionalismo, eis o inimigo!
Antigamente, invocava-se o "clericalismo": era esse o inimigo a que, há cem anos, os governos de esquerda recorriam sempre que não podiam, de outro modo, alegrar o seu "povo" com mais conquistas democráticas. Os governos do Partido Republicano Português, entre 1910 e 1926, viveram durante anos à custa desse papão. O actual governo da "esquerda moderna" tem outro inimigo: já não é o padre ultramontano, mas o funcionário, sob as suas múltiplas formas, no activo ou na reforma. Bem sei que convém a todos os protagonistas fazerem de conta que não é bem assim. Os ministros não admitem abertamente a cruzada contra os funcionários: limitam-se a deixar a imprensa "distorcer" o que dizem. Os funcionários, pelo seu lado, gostam de atribuir a severidade com que são tratados a uma perversão desnecessária do ministro que os tutela. A semana passada, durante as marchas populares dos professores na avenida, ouviu-se o velho rifão de que as "reformas" têm de ser feitas com, e não contra os funcionários. Eis uma tese em que, por respeito à inteligência dos funcionários, não podemos aceitar que eles acreditem verdadeiramente. Porque se há uma coisa certa e óbvia, é que as reformas deste governo têm de ser feitas contra os funcionários, e nunca com eles.
Para explicar a sanha contra os funcionários, há boas almas que atribuem ao actual Governo do PS um suposto projecto de "direita liberal" para minimizar o Estado. É talvez a mais comovente de todas as ilusões. As vítimas administrativas e docentes do actual Governo convencem-se assim de que os seus problemas seriam simplesmente resolvidos mudando estes ministros, ideologicamente contaminados, por outros ministros, ideologicamente mais puros. Mas este, como o chefe do Governo não se cansa de repetir, é bem um governo de esquerda. Mais: é o único governo de esquerda possível numa época de relativa estagnação económica, e quando já ninguém acredita nas vantagens de estatizar a produção da riqueza. O seu objectivo é preservar o actual Estado social, isto é, o sistema pelo qual o poder político se reserva o direito de determinar em última instância as "escolhas" dos indivíduos. E para isso, a "esquerda moderna" só encontrou um caminho. E esse caminho, quando retiramos aos discursos e planos governamentais a sua casca lírica, é basicamente este: exigir mais aos seus funcionários e pagar-lhes menos. É precisamente porque o Governo não quer nem pode contemplar uma verdadeira mudança de vida em Portugal, que precisa de levar o funcionalismo ao purgatório. A outra alternativa de esquerda seria destruir a sociedade com impostos. A "esquerda moderna" é, apesar de tudo, sensata.
Há ainda outra razão para fazer as reformas contra os funcionários. É que José Sócrates continuou a tradição, inaugurada por Durão Barroso em 2002, do governo-surpresa. Em Fevereiro de 2005, os actuais ministros propunham-se resolver os problemas dos portugueses criando milhares de empregos. Ninguém, em 2005, falou de revisão de carreiras da função pública ou de reformas da Segurança Social. Como legitimar, uma vez no poder, a cambalhota de políticas? De um ponto de vista de esquerda, nada melhor do que representar o novo rumo como uma batalha igualitarista contra os "privilégios" e as "regalias" do funcionalismo. Aqui, o Governo tem sido ajudado pelos seus alvos. Sempre que, no ecrã da televisão, surge um qualquer sindicalista da função pública a queixar-se da ameaça aos seus "direitos", a audiência percebe que são "direitos" que os restantes trabalhadores deste país nunca tiveram, nem podem ter, a começar pelo emprego vitalício. Os funcionários não são "vítimas" credíveis. Para a maioria da população, não são apenas gente com "regalias", mas com poder. Ninguém, nesta sociedade de indivíduos teoricamente apaixonados pela sua própria independência, gosta de depender dos outros. E devido ao Estado social que temos, demasiada gente fica sujeita, demasiadas vezes, aos funcionários. Qualquer ida a uma repartição ou a um centro de saúde aumenta, justa ou injustamente, o folclore nacional sobre a má vontade, o mau humor e a incompetência do funcionalismo. O Governo sabe disto. Basta-lhe, de resto, gerir a divulgação de estatísticas - como os maus resultados dos alunos em testes internacionais, e por aí fora -, para dar uma base científica aos preconceitos e ao ressentimento contra o funcionalismo. É por isso que enquanto os funcionários ocupam as ruas, as sondagens prometem ao PS uma nova maioria absoluta. Se os funcionários não existissem, este Governo teria de os inventar.
Utilizador – pagador
“Há que evitar que o princípio do utilizador-pagador se torne numa ‘verdade inquestionável’ aplicada a todas as situações.”
Nos últimos tempos têm sido contestadas, ou propostas, medidas que alegadamente se apoiam na ideia do utilizador–pagador. Caiem neste campo as taxas de utilização, ou moderadoras, no internamento anunciadas pelo Ministério da Saúde e as portagens a serem introduzidas nas SCUT, mas por vezes se refere também as propinas do ensino superior.
Sendo um princípio que começa a ser invocado com frequência, não de espantar que por vezes se faça uma deficiente utilização do conceito. Vejamos em que consiste realmente e porque é importante. No funcionamento de uma economia de mercado, entendida como uma organização das relações económicas em que não há planificação central, os “sinais” para consumo, para produção, para investimento, são transmitidos através dos preços. Confia-se em que a soma das decisões individuais, tomadas em liberdade, levem a resultados que sejam satisfatórios do ponto de vista social. Quando tal não sucede, poderá justificar-se a intervenção do Estado (e “poderá” porque não é certo que o Estado tenha a capacidade e por vezes mesmo o interesse em corrigir essas situações).
As decisões individuais estão, regra geral, associadas a escolhas que balançam custos e benefícios das opções disponíveis. Quando se fala em utilizador-pagador essencialmente está-se a afirmar que as decisões individuais estão mais próximas do interesse colectivo sempre que o decisor que recolhe os benefícios também suporta os custos associados com a decisão.
Em determinadas circunstâncias, a sociedade poderá considerar que os valores sociais não se encontram reflectidos na avaliação privada de custos e benefícios e abre espaço a uma intervenção correctiva. Noutros casos, a própria natureza da relação económica leva a que o princípio não seja aplicável.
As SCUT caiem no primeiro caso. As taxas de “utilização” no segundo. Vejamos porquê. No caso das auto-estradas, a sua utilização beneficia sobretudo o próprio condutor (maior rapidez de deslocação), pelo que à partida reúne as condições para que a decisão privada deva contemplar todos os custos e benefícios. A aplicação do principio do utilizador pagador surge como natural. Como a excepção resulta de valores sociais, caso a “sociedade” considere que na ausência de alternativas razoáveis (e a definição do “razoável” é um problema complicado...) se deve por, uma questão de solidariedade, partilhar os custos de infra-estruturas rodoviárias, então a existência de um benefício “social” que não é contemplado na decisão privada de usar a estrada será argumento para um redução do preço de portagem (podendo ou não colocá-lo a zero). Ou seja, se a sociedade considerar que todas as capitais de distrito não devem estar a mais do que um certo número de minutos de distancia umas das outras por motivos de coesão nacional, então fará sentido introduzir uma redução do custo para os utilizadores. Ainda assim, se focarmos a atenção nas pessoas, valorizando os custos e benefícios de deslocação associados com a interioridade, possivelmente seriamos levados não a portagens zero (os tais “sem custos para o utilizador”) e sim a descontos nos preços para os moradores registados das zonas afectadas, por exemplo (e com a Via Verde a implementação tecnológica de uma opção desse tipo não teria provavelmente custo proibitivo). Tal tornaria explícito o valor dado aos custos de interioridade, e o principio do utilizador pagador seria devidamente aplicado.
O segundo exemplo, das “taxas de utilização”, é diferente na sua substância. Embora de um ponto de vista de eficiência no momento de recurso a cuidados médicos continue a fazer sentido que quem beneficia tenha em conta os custos de gerar esse benefício, há uma diferença fundamental. Em geral, desconhece-se quando e em que medida se vai necessitar de cuidados médicos. Há uma incerteza sobre o momento e sobre o montante associado com essas necessidades. Como em outras situações de incerteza, procuram-se mecanismos de cobertura dessa incerteza. No caso de Portugal e das despesas em saúde, o Serviço Nacional de Saúde funciona como um gigantesco seguro, em que por conta de pagamentos antecipados (os impostos pagos, que funcionam como “prémio de seguro”) se transfere para outra entidade a responsabilidade de pagar as despesas médicas no momento em que ocorram. Logo, a aplicação do princípio do utilizador-pagador é aqui errada. Seguida estritamente significaria a imposição do custo da incerteza sobre a população, quando todos ficam melhor com a eliminação, pelo menos parcialmente, dessa incerteza. É verdade que o Ministério da Saúde não falou na aplicação do princípio do utilizador-pagador, nem sequer deu a entender que o tivesse em mente. Mas tal não impediu que se pudesse fazer o paralelo. Importa por isso que fique claro que a aplicação desse conceito não pode ser feita de forma cega.
Há, assim, que evitar que o princípio do utilizador-pagador se torne numa “verdade inquestionável” aplicada a todas as situações. É certo que na grande maioria das decisões este é um princípio que deve ser seguido. Mas há que ter a lucidez de perceber em que circunstâncias se devem ter excepções, nomeadamente quando estamos na presença de mecanismos de seguro que procuram resolver exposição a incerteza. Nesses casos, há que encontrar um equilíbrio entre diferentes objectivos, como obter decisões eficientes nesse momento (a favor do princípio do utilizador pagador) e manter protecção contra o risco (contra o princípio do utilizador pagador depois do acontecimento adverso se ter realizado). Esperemos que de um lado e doutro da barricada do combate político não se “abata” a correcta aplicação de princípios económicos.
Um problema, dois desafios
Imagine que os salários em Portugal eram pagos em 12 e não 14 fracções. Quantos conseguiriam ter o Verão habitual, mais o consumismo do fim de ano?
Não será preciso lembrar as dietas loucas do Verão que passou para convencer o leitor da dificuldade de cumprir o desígnio de ser dono e senhor de si próprio. Cadeados no frigorífico; despertadores fora de alcance; cigarros nas mãos de outros: exemplos do problema de “auto-controlo” não rareiam. O confronto entre o “eu” disciplinado e o “eu” que, como Wilde, não consegue resistir a uma tentação, abunda em estudos de psicologia e de economia do comportamento.
Vencer o desafio pessoal de auto-controlo não é só essencial: é também nobre. Na obra ‘The Theory of Moral Sentiments’, lemos que ‘Self-command is not only itself a great virtue, but from it all the other virtues seem to derive their principal lustre’. A ideia de Adam Smith parece indisputável: quanto maior o auto-controlo, mais intencionais as nossas acções; quanto mais intencionais as nossas acções, maior o mérito do que delas resulta; e quanto maior o mérito resultante, maior o “brilho” das acções virtuosas.
A implicação fundamental da dificuldade de auto-controlo é que uma liberdade restringida pode, por vezes, ser vantajosa. Recordemos o exemplo clássico: Ulisses, seguindo os conselhos de Circe, pede aos seus marinheiros que o amarrem ao mastro do navio e que o não soltem – mesmo que ele peça – antes de passarem a ilha das Sereias. Para testemunhar os (en)cantos das ninfas marítimas sem arriscar a sua vida, o herói da Odisseia decide, conscientemente, diminuir a sua liberdade de escolha.
Passemos ao segundo desafio, não pessoal mas social. Imagine que os salários em Portugal eram pagos em 12 e não 14 fracções. Quantos conseguiriam ter o Verão habitual, mais o consumismo do fim de ano? O exemplo ilustra a dificuldade - bem documentada - de resitir à tentação de gastar, mesmo quando o “eu” racional nos manda poupar. Para muitos, como cantam os Rádio Macau, “amanhã é sempre longe demais”.
A questão do auto-controlo tem uma consequência importante para o sistema de pensões de reforma: a necessidade de haver (alg)uma contribuição obrigatória. Há quinze dias, defendemos aqui uma mudança de paradigma para um sistema misto onde a pedra basilar seja uma componente de capitalização individual, mais transparente. Acrescentamos que a “justiça social” deve influir sobretudo na política fiscal – nomeadamente com impostos progressivos – e não no que cada um receberá depois de uma vida de descontos.
Uma nota final. Limitar a liberdade de escolha para benefício do próprio resvala facilmente para paternalismos que repudiamos (lembremos “1984”, de Orwell). Mas negar a natureza humana, negando o problema do auto-controlo, não é aceitável. Procurar uma forma ponderada e limitada de intervir na esfera individual de cada um – é este, politicamente, o grande desafio.
Quase meio milhão de pessoas vive de rendas, juros ou lucros
Muito se tem discutido nos últimos anos em torno da evolução dos rendimentos e do poder de compra dos portugueses. No entanto, esta discussão não diz respeito a todos. É que, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), 5,1% das pessoas vivem essencialmente de rendimentos gerados pelos seus activos, seja na forma de prédios, de acções ou de depósitos e obrigações. No segundo trimestre deste ano, eram cerca de 450 mil os que tinham como principal fonte de rendimento lucros (dividendos), juros ou rendas.
Este quase meio milhão de pessoas que "vive de rendimentos" (gerados pelos seus activos) não se deu mal durante a crise económica que assolou o país a partir de 2002. Os dados do INE, solicitados pelo DN, demonstram que este número de pessoas saiu reforçado da crise. No segundo trimestre de 1998, eram pouco mais de 280 mil, ou seja 3,4% da população com mais de 15 anos. Em 2001 já eram 4,4% e, crescendo de forma sustentada em plena crise económica, chegaram aos 477 mil em 2004, o equivalente a 5,4% da população. Em 2005, este número registou uma quebra, voltando a subir, ainda que de forma ligeira, no presente ano, situando-se em 5,1% da população com mais de 15 anos.
O Instituto Nacional de Estatística classifica 93% destas pessoas como empregadas, o que significa que uma parte delas aufere igualmente rendimentos de trabalho (outra parte poderá não receber outros rendimentos, empregando o seu tempo de trabalho exclusivamente na extracção de rendimento dos seus activos).
Maioria vive do seu salário
A maioria dos portugueses vive com o que recebe pelo seu trabalho. Segundo o INE, no segundo trimestre deste ano, 4,2 milhões de pessoas tinham como principal fonte de rendimento o seu vencimento, o que corresponde a quase metade do universo de pessoas com idade para trabalhar (47,1%). Esta percentagem manteve-se relativamente estável ao longo dos últimos anos, tendo atingido o nível mais elevado em 2000, 49,2%.
Os reformados são o segundo grupo mais representativo. O seu peso tem vindo a crescer, passando de 23,6%, no segundo trimestre de 1998, para 25,2% no mesmo período deste ano. Pouco relevante é o número dos que vivem de prestações sociais, designadamente do subsídio de desemprego: são menos de 3% da população (esta percentagem pode estar subavaliada pois os inquiridos escondem por vezes o acesso ao subsídio de desemprego).
OE afecta salários e pensões
A proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2007 introduziu poucas alterações à tributação dos rendimentos. Porém, acabou por agravar indirectamente a carga fiscal da maioria dos trabalhadores por conta de outrem (que deverão ter aumentos superiores à actualização de 2,1% dos escalões de IRS). Dentro do segmento dos trabalhadores por conta de outrem, há um subgrupo particularmente afectado que são os portadores de deficiência (excepto aqueles que ganhem pouco mais do que o salário médio), cuja tributação vai disparar já em Janeiro.
Quanto aos reformados, 180 mil (segundo números do Ministério das Finanças) vão pagar mais imposto por via da redução da dedução específica (parcela que é abatida ao montante anual das pensões).
Já no que diz respeito aos rendimentos resultantes de activos - sejam eles prédios (rendas), acções (dividendos), depósitos ou obrigações (juros) - estes mantêm o actual regime de tributação, genericamente mais favorável (ver texto ao lado).
Começa a nascer na sociedade portuguesa uma contestação forte e perigosa ao 25 de Abril.
Ela pode ser descrita mais ou menos da seguinte forma: "A geração que fez a revolução governou-se com ela; conquistou direitos, arranjou posições seguras, empregos bem remunerados, apoios do Estado. Agora quem sofre são os seus filhos, na casa dos 20 ou 30 anos, que, mesmo com cursos superiores, não conseguem carreira estável e andam no desemprego, a recibo verde ou trabalho temporário."
Primeiro temos de verificar se a crítica se baseia em factos reais. A resposta é claramente negativa. A geração anterior, quando era jovem, sofreu muito mais que esta. Não é justo acusar assim quem tanto fez pelo País.
É verdade que a crise actual tem sido muito dura para os jovens. O seu desemprego subiu bastante. Enquanto a taxa total média, desde o segundo semestre de 2000 ao segundo de 2006, se elevou de 3,8% para 7,3%, o desemprego entre os jovens até aos 24 anos passou de 7,9% para 14,8% e dos 25 aos 34 anos subiu de 4,4% para 8,7%. Mas um fenómeno paralelo sucedera nas crises anteriores. No 25 de Abril, de 1974 para 1977, a taxa dos jovens até aos 24 anos subiu de 2,8% para uns incríveis 23% e na faixa dos 25 aos 39 anos foi desde 0,9% até 6,6%. O mesmo padrão se repetiu nas recessões seguintes, com os jovens a perderem sempre mais emprego que a média. Por exemplo, a nossa última derrapagem, no início dos anos 90, foi nisto bem pior que a actual, pois a taxa até aos 25 anos chegou aos 17,2% e aos 8,8% dos 25 aos 34 anos.
Na distribuição do desemprego pelos níveis de escolaridade, o mais evidente é a semelhança de comportamento em todos os graus de ensino. Nos últimos seis anos a taxa de desemprego dos trabalhadores com formação igual ou inferior ao ensino básico subiu de 3,8% para 7,4%, enquanto que para o ensino secundário e superior passou dos mesmos 3,8% para 6,8%. Isto é bem melhor que em 1974-77, quando o desemprego no ensino superior atingiu os 12%, e nos graus inferiores 8,5%.
A precariedade é o único campo onde a evolução recente não é claramente melhor que a anterior. A percentagem de contratos a prazo sempre teve tendência para subir quando o desemprego desce e cair quando ele sobe, indicando que, nas épocas de dificuldade, quem mais sofre são os temporários. Mas se na crise de 1983 a 1985 os contratos a prazo caíram de 19,8% para 12% do total do emprego, e no início dos anos 90 de 20% para 10,4%, desta vez apenas desceram de um máximo de 21,6% para um mínimo de 19,1%.
Assim, à primeira vista, a crítica não passa de uma ilusão de óptica. Uma crise presente parece sempre mais grave que as antigas. A acusação limita-se a racionalizar essa dor, utilizando a retórica política que pede reformas contra os grupos instalados.
Mas, por outro lado, ela tem alguma plausibilidade. Verificaram-se mudanças importantes após a revolução, não tanto nos termos físicos das crises, mas nas atitudes. O que mais mudou desde Abril foram as reclamações. A jovem geração pode justamente queixar-se de expectativas defraudadas.
As duas primeiras décadas após a revolução de Abril estiveram bem conscientes das dificuldades. Construir a democracia e entrar na Europa eram desafios majestosos, que exigiam trabalho, esforço, empenhamento. Palavras como "desafio", "exigência", constituíam o essencial do discurso de responsáveis como Soares ou Cavaco. Mas na terceira década alterou-se a atitude. Vencida a aposta, tratava-se de aproveitar os ganhos. Os políticos recentes falam-nos mais de "garantias", "benefícios", "qualidade".
Foi nesta vaga que os jovens actuais foram educados. O Portugal moderno e europeu não lhes pedia dificuldades e dedicação, mas prometia bons empregos sem grande esforço. As universidades, muitas delas péssimas, licenciavam pessoas que ansiavam por muito mais do que sabiam fazer. Era inevitável a desilusão.
Isso vê-se no mais estranho elemento da actual crise. Desde 2000, quando começou a subir, o desemprego aumentou já de 179 mil pessoas. Mas, no mesmo período, foram criados e ocupados mais 209 mil postos de trabalho. Cresce o desemprego e o emprego. Como se explica o paradoxo? São tarefas que os jovens não querem fazer. Os seus pais teriam aceitado, mas eles não gostam. Os novos empregos são para os imigrantes, que aumentaram em 388 mil pessoas a população activa.
Existe de facto uma crise nos 30 anos do 25 de Abril. Mas ela deve-se sobretudo ao sucesso da revolução.
Sim, Carolina...
Quando José Mourinho regressou ao Porto, já como treinador do Chelsea, levou seguranças, dizendo: “quando vou a Palermo, tem de ser assim”.
Desde Miguel Sousa Tavares aos Gatos Fedorentos, desde Dias Ferreira às revistas popularuchas de televisão como a TV 7 Dias, o ataque a Carolina Salgado foi avassalador. Mal se soube que a senhora tinha escrito um livro onde contava pormenores sobre a vida com Pinto da Costa e revelava alguns dos métodos do presidente do FC Porto para atingir os seus objectivos, o coro de protestos foi imenso. O tom de superioridade moral da maioria foi espantoso: para quase todos, tratava-se de uma senhora reles, sem carácter, duvidosa. Numa palavra, tratava-se de um alvo a abater, e depressa. A tentativa de assassinato de carácter que toda esta gente fez a Carolina Salgado é reveladora, não só dos instintos machistas grosseiros e boçais que ainda prevalecem por cá, como dos instintos de classe. Carolina Salgado não é uma menina bem, não vem de boas famílias, cometeu muitos erros na vida, comeu o pão que o diabo amassou, deixou-se usar numa guerra suja, meteu a mão na anca quando foi preciso e sujou as mãos quando lhe pediram. Sim, é tudo verdade, e também trabalhou como alternadeira, no Calor da Noite. Porém, isso não a diminui aos olhos do mundo, não lhe retira força. Bem pelo contrário. A vontade expressa de a enxovalharem, de a vilependiarem, é apenas uma estratégia, reveladora de um preconceito fortíssimo, um preconceito vil e ignóbil, daqueles que se julgam virtuosos. É tão fácil atirar-lhe pedras, cuspir-lhe na reputação. Tal como muitos chamaram às vítimas do processo Casa Pia prostitutos e mentirosos, agora também chamam a Carolina tudo e mais alguma coisa. É preciso diminuí-la, desgastá-la, descredibilizá-la. A defesa de Pinto da Costa já começou, e os seus lacaios fazem-lhe o servicinho, tendo por isso como aliados os idiotas úteis do costume. É preciso baralhar o povo, confundir as pessoas, para os imorais triunfarem.
Mas, convém ter bem a noção do que se está a passar. Pela primeira vez em vinte e tal anos, houve um terramoto no Porto. Sim, um terramoto de grau muito elevado. As coisas que Carolina revela, e a coragem com que o faz, são terríveis, e mostram que tudo o que se suspeitava pode bem ser verdade.
Aqui há uns anos, quando José Mourinho regressou ao Porto, já como treinador do Chelsea, levou seguranças, e perguntaram-lhe porque o fazia. Ele respondeu: “quando vou a Palermo, tem de ser assim”. Palermo...Palermo é a capital da Sicília, terra da Mafia, da Cosa Nostra. José Mourinho tinha sido treinador do FC Porto, onde tinha vencido uma taça UEFA e uma Liga dos Campeões. Sabia do que falava. Ele vira, por dentro, como funcionava a casa de Pinto da Costa, quais os métodos e as artes. E falava em Palermo...Pena que não tenha sido mais corajoso, contando o que viu. Coragem essa que não falta a Carolina Salgado, fazendo com isso saltar dos eixos o futebol português. Agora, parece ter chegado o tempo de começarmos a saber o que se passa. Agora, esse poder oculto do futebol português vai submergir, vai ser posto a nu, e vai queimar muita gente.
Agressões a vereadores de Gondomar, conversas com árbitros em casa, gavetas cheias de dinheiro, colaborações secretas com a PJ do Porto, controle das classificações do árbitros, suspeitas de associação criminosa. Ao pé das acusações que caiem sobre Pinto da Costa, Vale e Azevedo parece um aprendiz e no entanto foi parar à cadeia. Veremos se a justiça portuguesa considera mais grave uma burla do que uma associação criminosa.
Mas, nos salões bem pensantes de Portugal, nas redacções dos jornais, nos cafés, o que está a dar é achincalhar Carolina Salgado. Chamar-lhe nomes, gozar com ela, é que é giro. Os portugueses são um povo muito curioso, nunca levam a sério o que é sério, preferem a reputação à substância. Por causa dessa característica antropológica, transformam tudo num espectáculo de circo, sem perceber que assim contribuem para perpétuar uma sujeira e não para a limpar. Mas, enquanto há vida, há esperança. Em Palermo, as coisas também mudaram um dia...