Terça-feira, 6 de Dezembro de 2005
Pensem nisto
Rui Ramos
Somos muito engraçados. Quem alguma vez duvidou dessa qualidade nacional deve-se ter convencido agora, com as reacções à encarnação do prof. Cavaco Silva como candidato presidencial. Os comentadores dividiram-se em duas metades. Uns acharam que o prof. Cavaco falou de menos. Outros, como mandam as regras do circo, acharam precisamente o contrário. Os primeiros ficaram escandalizados porque o prof. Cavaco não prometeu privatizar o Mosteiro dos Jerónimos ou anexar as funções de primeiro-ministro à presidência da república. Os segundos protestaram por o prof. Cavaco não se ter limitado a reconhecer que o país acabara e confessar que apenas quer chegar à presidência para assistir ao afundamento sentado na primeira fila.
Entre uns e outros, apareceu, como não podia deixar de aparecer, a gente do costume a arejar o clichézinho do costume. Quando Oliveira Martins, em 1879, inventou o sebastianismo como explicação para tudo, mal sabia quanto trabalho mental iria poupar a sucessivas gerações de portugueses. Desde então que a explicação sebástica funciona, em Portugal, como a base de uma espécie de inteligência de algibeira. Sempre que lhe convem parecer sábio, o indígena já sabe o que deve fazer: cita o tal sebastianismo, fala com ironia do homem providencial, e reflecte severamente sobre o atraso nacional. Nas últimas semanas, houve muita gente que se tornou inteligente assim, à custa do prof. Cavaco.
E no entanto, não é muito difícil perceber o que está em jogo. Reparem, por exemplo, no modo como os mais sérios candidatos de esquerda estão a ser acusados de imitar Cavaco. Ora é o dr. Alegre que, de repente, também quer ser independente dos partidos, ora é o dr. Soares que finalmente compreende, depois de muitos anos, que sem criação de riqueza o Estado Social não sobreviverá. Como explicar estas inesperadas conversões? Em 1995, o prof. Cavaco foi despedido com maus modos. Só que depois do pântano do eng. Guterres, e dos choques do dr. Barroso e do eng. Sócrates, foi difícil não o recordar como o último governante decente e responsável. E foi ainda mais difícil impedir que, desde a denúncia do monstro, ele acabasse por determinar os termos do debate político. Hoje, quem quiser ser levado a sério tem de ser um pouco cavaquista. É irritante? É assim.
É verdade que, em Belém, o prof. Cavaco não poderá obrigar os portugueses a trabalhar mais, e mais eficientemente. Também é verdade que o prof. Cavaco quer, ao contrário do que dizem as esquerdas, redimir esta versão portuguesa do Estado Social. Por mim, teria preferido ver o prof. Cavaco a assumir um outro projecto político, propondo-se criar em Portugal, gradual e tranquilamente, um modelo social diferente deste, fundado na responsabilidade individual e na participação cívica. Mas o Prof. Cavaco não deseja confrontos ideológicos, ou convenceu-se (talvez com razão) de que o Partido do Estado é demasiado poderoso. Nada disto me impede de reconhecer que o prof. Cavaco me dá uma garantia: a de que, com ele, estará na presidência alguém suficientemente lúcido, independente e patriota para, pelo menos, não colaborar com qualquer governo que, por cobardia ou incompetência, tente salvar o statu quo à custa do futuro. Que mais lhe poderei pedir? O verdadeiro papel do titular de um órgão de soberania não é mudar o país, mas obstar a que os interesses instalados usem o poder do Estado para impedir os portugueses de mudar, se os portugueses quiserem e puderem mudar. É esta a garantia que o prof. Cavaco me dá. É esta a única garantia de que preciso. O resto, meus amigos, é connosco. Pensem nisto.