Domingo, 11 de Setembro de 2005
choque da procura no próximo Inverno
«Caso haja este ano uma paralisação grave na Europa, Portugal ficará vulnerável.»
O ESCRITOR argentino Bioy Casares concebeu num dos seus romances um personagem que não pára de fazer mal a si próprio. Nos tempos de chumbo que vivemos, quando se acumulam as notícias de estagnação económica, de retracção do investimento, de diminuição das exportações, de perda de quotas de mercado, vemos quão nefasto é o facto de o país não ter um modelo de desenvolvimento estratégico, não ter lideranças esclarecidas e consistentes e ficar prisioneiro dos egoísmos corporativos. Face a tímidas medidas de mudança, dá um exemplo de que não quer mudar e hipoteca o futuro.

Na verdade, Portugal parece a personagem de Bioy Casares e não pára de fazer mal a si próprio. São muitos os que pensam na seita, na corporação, no partido; são poucos os que pensam no país e no seu futuro.

No domínio energético, o futuro pode reservar-nos uma surpresa capaz de penalizar ainda mais a economia. O balanço cerrado entre a oferta e a procura de petróleo pode neste Inverno entrar em desequilíbrio em favor da procura. Se isso acontecer, o preço subirá ainda mais e de forma rápida, colocando-nos no limiar de um choque petrolífero. O choque pode ser evitado com o arrefecimento da economia chinesa e americana ou a capacidade da OPEP elevar a sua produção no último trimestre de 2005. Ambas as hipóteses parecem pouco realistas à luz dos dados actuais. Talvez um aumento da produção dos países não-OPEP, ou uma súbita queda da procura, ou uma acumulação estável dos «stocks», possam ocorrer e evitar o choque, mas vai ser difícil. Para entendermos a complexidade da situação, há três perguntas que temos de fazer: por que é que os preços do petróleo se mantêm altos? Por que é que em 2004 não houve choque petrolífero? E o que aconteceu em 2005?

Os preços altos do petróleo devem-se ao crescimento da procura, sobretudo dos países emergentes, e à incapacidade de resposta do sistema petrolífero actual. Depois da crise asiática de 1998, quando o preço desceu abaixo dos 10 dólares por barril, a indústria atravessou uma fase de subinvestimento, que se agravou com o rebentar da bolha tecnológica em 2000 e com os ataques terroristas às torres gémeas em 2001. Ninguém previu o novo ciclo de crescimento económico e o «boom» da procura. A falta de investimento potenciou os constrangimentos desde a produção à refinação. Há mais de 30 anos que não se constroem refinarias nos EUA e noutros países ocidentais e existe um factor que agrava os preços: o pouco óleo excedentário disponível é produzido pela Arábia Saudita e outros países do Golfo e esse óleo é em geral pesado, tem elevado teor de enxofre e não pode ser processado pelas refinarias americanas e ocidentais. Isso faz escassear a gasolina, o «jet fuel» e o diesel, que derivam de óleos mais finos que não aparecem facilmente no mercado. Para agravar a situação, a produção do Alasca e do Mar do Norte entrou em declínio e isso aumenta a dependência dos países ocidentais. Alguns campos começam a entrar em queda, como é o caso do Cantarell, localizado na baía de Campeche, no México, que é o segundo do mundo em produção. O efeito Cantarell acentua ainda mais o balanço cerrado entre oferta e procura. Acresce a isso o facto de a OPEP revelar uma erosão da sua capacidade excedentária de produção que em 20 anos diminuiu 15 vezes, passando de 15 milhões de barris por dia (mb/d) para menos de 1 mb/d. E a Arábia Saudita, que actuava como «swing producer», aumentando a sua produção quando existiam problemas, está hoje condicionada. Em 2001, quando a contestação ao Presidente Chavez na Venezuela atingiu o zénite e se assistiu ao colapso, privando os mercados de 2 mb/d, a Arábia Saudita aumentou a produção, repôs o nível da oferta e os preços não foram afectados. Hoje não é assim, e por isso qualquer greve na Nigéria ou na Noruega, um tufão nas Caraíbas ou um ataque pirata no estreito de Malaca provocam uma subida imediata dos preços.

Apesar de tudo, os aumentos de preço em 2004 não conduziram a um choque petrolífero. Na Europa, a valorização do euro amorteceu o efeito da subida. Por outro lado, os aumentos ocorreram de forma gradual, num ciclo de crescimento económico e com inflação baixa. Os choques de 1973 e de 1979/80 foram induzidos pela ruptura drástica da oferta e são diferentes na sua génese da crise actual causada pela evolução da procura. Esses choques ocorreram com grandes aumentos de preços em curtos períodos de tempo num contexto de baixo crescimento económico e inflações elevadas. Daí a sua inevitabilidade.

Hoje a situação é diferente, os países desenvolvidos aprenderam a lição, têm uma intensidade energética mais baixa, isto é, a sua dependência do petróleo diminuiu. Portugal é a excepção com uma elevada intensidade energética que tem vindo a aumentar todos os anos. Em caso de choque, Portugal é um dos países mais mal preparados da União porque nunca deixou de fazer mal a si próprio. E isto é tanto mais grave quanto se sabe que 40% das reservas estratégicas de petróleo do país, a serem utilizadas em caso de crise, estão na Alemanha. Caso haja uma paralisação grave na Europa, Portugal ficará vulnerável.

O que aconteceu em 2005? Manteve-se o ritmo da procura do petróleo e gás e a penúria global da capacidade de refinação. As previsões de arrefecimento da economia chinesa, apesar da valorização do renminbi, não se têm verificado, e inclusive em Maio a produção industrial bateu todos os recordes. Por outro lado, a China começou o aprovisionamento das suas reservas estratégicas para o caso de crise, o que significa uma pressão adicional sobre o mercado. Do lado da OPEP confirma-se a erosão da capacidade excedentária e existem análises sombrias sobre o potencial saudita, o que deixa em aberto questões para o futuro, pois as suas reservas não são auditadas há mais de 25 anos. 90% do óleo saudita provêm de sete campos gigantes, alguns dos quais produzem há mais de 50 anos. Apesar dos investimentos recentes, a produção dos campos novos vai demorar. Entretanto a Rússia, o segundo produtor do mundo, revelou uma baixa de produção face às expectativas criadas. O assalto à Yukos pode repetir-se, a rede de «pipelines» deteriora-se e a não-transparência das entidades reguladoras retrai o investimento, que caiu 6.5% este ano. Os ataques terroristas no Iraque mantêm o campo de Kirkuk paralisado, a produção do país cai a pique. A eclosão de ataques piratas no estreito de Malaca, onde circula metade do petróleo que é produzido no mundo, agravados com o tsunami, cria sérias preocupações no mercado e recoloca a questão da segurança do abastecimento. Se a isto acrescentarmos as previsões da procura de petróleo para o último trimestre de 2005, quando o Inverno começar, que apesar de revistas em baixa são ainda significativas, é legítimo perguntarmos o que pode acontecer. A resposta é complexa, mas há uma probabilidade elevada de a oferta ficar abaixo da procura pela primeira vez em muitos anos e os efeitos psicológicos serão devastadores: os preços podem subir ainda mais e um novo choque petrolífero pode ocorrer. A tendência de preços elevados é confirmada pelo mercado de futuros, onde até 2014 se mantêm em alta. O próximo Inverno pode ser difícil tendo em conta que a zona Euro está numa fase de fraco crescimento económico. Portugal tem de lutar pelo melhor mas preparar-se para o pior. E acreditar que o futuro, muitas vezes, difere das previsões.


publicado por psylva às 12:57
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1 comentário:
De tv a 24 de Novembro de 2010 às 23:25
Estou a ver na televisao informacao sobre a greve. O governo para o resto nunca tem números exactos, para a adesão à greve tem...


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