Domingo, 11 de Setembro de 2005
O medo da exigência
«Com Cavaco Silva Presidente viveremos uma fase mais à inglesa ou à alemã»
SE CAVACO Silva se candidatar, a próxima eleição presidencial colocará Portugal perante os seus velhos medos. Já não o medo de arriscar a liberdade (medo suscitado por muitos, em 1985, quando Cavaco Silva se candidatou a primeiro-ministro), mas medos mais sofisticados: o medo da autoridade e o medo da exigência.
Cavaco Silva, todos o sabem hoje, é um homem sério, com íntegro sentido de Estado e inconformado com a tendência de empobrecimento de Portugal. Também é consensual que se trata de uma personalidade forte, pouco dada a transigências palacianas e estruturalmente exigente. Sabemos, ainda, que é um político com carisma, o que lhe permite ocupar espaço com facilidade, com uma profunda marca de autodisciplina e de sentido de autoridade. Percebe-se, igualmente, que é um homem de acção, que quer ver as «coisas» a mexer e a acontecer, uma personalidade independente, que não tem famílias nem partidos para proteger, e um carácter firme, por vezes áspero, que sublinha com nitidez o seu sentido de exigência. Finalmente, é alguém com um percurso de vida feito a pulso, ansioso e impaciente por melhorar a sua situação de partida e que os outros façam o mesmo, com temperamento e imaginário de vencedor.
Esta personalidade deixa os portugueses embaraçados. Racionalmente, é a pessoa que é precisa; intuitivamente, muitos pensarão que é alguém que, projectado ao mais alto nível, mexe excessivamente com as nossas características. Racionalmente, é a personalidade com dimensão e determinação para assegurar estabilidade e firmeza de rumos aos governos que se disponham a fazer o que tem que ser feito; intuitivamente, é a personalidade que, depois de escolhida, não voltará atrás e assegurará mesmo que o que tem que ser feito será mesmo feito e não é claro que os portugueses todos queiram verdadeiramente isso.
A sublimação deste embaraço é feita ao nível do raciocínio e das dúvidas políticas: terá Cavaco Silva perfil de Presidente da República? A questão é posta mais para espantar o embaraço do que por corresponder a um problema real. É evidente que Cavaco Silva, se se candidatar e vier a ser eleito, exercerá o cargo dentro das normas constitucionais e do papel de moderador que cabe ao Presidente e dará à função a marca própria da sua personalidade.
A questão sobre o perfil de Cavaco Silva é suscitada por outra razão: a força da sua personalidade, a sua exigência e o seu dinamismo atraem por fazerem acreditar que, nos próximos dez anos, todos os governos terão um interlocutor muito exigente e um «alter ego» institucional que os fará governar sem possibilidade de desleixo. Ao mesmo tempo, esta atracção converte-se em receio de que aquela mesma personalidade forte introduza um nível de exigência perturbador e que esteja para lá do padrão de exigência considerado pela generalidade dos portugueses como suportável. É com este dilema, se calhar inconsciente, que muitos portugueses poderão vir a confrontar-se até ao momento do voto.
Outra dimensão do embaraço reside na determinação que todos sabemos que Cavaco Silva teria de fazer com que Portugal se concentrasse em questões concretas e na questão do seu próprio desenvolvimento. O político sedutor de estafados lugares comuns, de ideias gerais e que divide o mundo moderno, muito comodamente, ainda em direita e esquerda, nada tem que ver com Cavaco Silva. Se Portugal tivesse Cavaco Silva como Presidente é óbvio que viveríamos uma fase mais à inglesa ou à alemã, ou mesmo à espanhola, com ênfase colectiva nos grandes temas, precisos e concretos, do desenvolvimento (e enriquecimento, convém assumi-lo) do país e nas políticas, precisas e concretas, para atingirmos os objectivos de desenvolvimento que, como nação, pretendemos alcançar.
O tipo de político generalista, sobretudo de formação jacobina, porque não introduz qualquer mudança nos velhos e adquiridos quadros mentais sobre o modo de ver e de viver a cidadania, tem a vantagem de não obrigar a riscos de decisão, apesar de poder significar mais do mesmo e esse mesmo ser já muito pouco para um país em rota estranha de decadência. Já uma personalidade como Cavaco Silva, se é verdade que oferece aos cidadãos uma oportunidade e uma garantia de concentração e mobilização do país para temas, diria, operacionais e orientados para resultados práticos, implica, para muitos, a inquietação de optar por um nível de exigência, desde logo na concentração em objectivos palpáveis, que poderá ser tido como disruptivo e que muitos, genuinamente, considerarão anticultural para o paradigma português.