Sexta-feira, 9 de Setembro de 2005
Mãos sujas
Será que é possível exercer política permanecendo inocente, isto é, sem nunca praticar actos moralmente errados?
Será que é possível exercer a actividade política permanecendo inocente, isto é, sem nunca praticar actos moralmente errados? Este é o problema que Jean-Paul Sartre levanta numa peça intitulada Les Mains Sales e que, por essa razão, passou a ser conhecido no pensamento ético contemporâneo como o problema das mãos sujas. Embora não haja unanimidade na reposta a dar à questão levantada, eu não tenho grandes hesitações em considerar que essa resposta deve ser negativa.
Como é sabido, muita gente suja as mãos na política de um modo torpe e que deve ser severamente combatido. Refiro-me a actos de corrupção activa e passiva, enriquecimento indevido, favorecimento pessoal e partidário, etc. Infelizmente, quase todas as semanas temos notícia de mais um caso, aos níveis autárquico e do poder central. Mas, se só se sujasse as mãos desta forma, haveria ainda muitos agentes políticos de mãos limpas. No entanto, há outra forma mais subtil - e também inevitável - de sujar as mãos em política.
Muitas vezes, os políticos sujam as mãos ao fazer exactamente aquilo que devem fazer do ponto de vista político. Assim, se um dirigente legítimo de uma nação democrática ordenar um ataque a um grupo terrorista, dentro ou fora das suas fronteiras, está a fazer o que deve para proteger os seus concidadãos e contará certamente com o apoio da esmagadora maioria. Mas irá provocar várias mortes de indivíduos que até poderão estar inocentes - o que é moralmente errado. Se o mesmo dirigente político ordenar o assassínio, pelos serviços secretos, do líder desse grupo terrorista, estará mais uma vez a proteger a sua nação, que o apoiará, mas também a fazer algo moralmente errado.
Outro exemplo, a um nível mais pacífico: quando um político é desleal em relação a um amigo de longa data ocultando-lhe que se vai candidatar a um lugar a que esse amigo almeja - bloqueando assim a candidatura dele - está a fazer algo moralmente errado. No entanto, essa deslealdade pode justificar-se politicamente. Pode-se considerar que a deslealdade cometida constitui um serviço feito ao partido, ou mesmo ao país. Essa deslealdade pode ter sido praticada genuinamente a contragosto, por dever político. Tal como no exemplo dos terroristas, o homem político terá feito o que é mais adequado politicamente e aquilo que os seus apoiantes esperavam dele. Mas não pôde evitar sujar as mãos.
Assim, sujar as mãos alguma vez, ou algumas vezes, parece inevitável, pelo menos para aqueles que têm uma carreira política longa e com responsabilidades. Os maus políticos fazem-no de um modo torpe. Mas também os melhores políticos não podem deixar de o fazer, ainda que de uma forma não comparável e com a melhor das intenções. Porém, se estes políticos forem seres humanos normais e minimamente reflexivos, também não deixarão de sentir na consciência o peso dos seus actos. Será que podem livrar-se do remorso? Será que podem lavar as mãos depois de as terem sujado?
Penso que não. Albert Camus, que nestas e noutras coisas era mais lúcido do que Sartre, abordou também o tema das mãos sujas numa peça ainda recentemente encenada em Lisboa: Les Justes. Para Camus, quem envereda pelos pecados e pecadilhos que a política leva a cometer deve depois pagar o seu preço. O assassino justo de Camus, condenado pelo homicídio de um tirano sanguinário, aceita o cadafalso como expiação por um acto politicamente louvável. Também os melhores agentes políticos que, como dissemos, inevitavelmente sujam as mãos, deverão carregar para sempre consigo o peso do mal que praticaram. É essa a sua expiação. Nada nem ninguém poderá aliviar-lhes a consciência pesada pelas mortes que provocaram ou pelos amigos que traíram.