Domingo, 28 de Agosto de 2005
Locke e o terrorismo
Ao contrário do que dizem os líderes políticos do mundo livre, o terrorismo islâmico está a modificar o nosso modo de vida.
Liberdade e segurança são dois valores inter-relacionados, mas não do modo como geralmente se pensa. Tendemos a considerá-los indissociáveis e complementares. Pensamos que não existe verdadeira liberdade sem segurança e que a segurança não tem valor sem a liberdade. Isso é certo. Mas tendemos também a crer que liberdade e segurança estão sempre a par, numa espécie de equilíbrio pré-definido. Infelizmente, não é assim. O equilíbrio entre os dois valores é contingente, varia com as circunstâncias. Há inúmeras situações em que liberdade e segurança entram em rota de colisão e em que é necessário modificar o balanço entre as duas. Ou seja, sacrificar um pouco de uma delas para não perder totalmente a outra. Mas como fazê-lo?
O melhor guião para repensar o balanço entre liberdade e segurança continua a ser o que nos foi deixado, na proto-história do liberalismo, pelo filósofo inglês John Locke. Locke tinha a percepção clara de que o modo como os teóricos do poder absoluto particularmente Thomas Hobbes tinham pensado a relação entre estes dois valores era profundamente insatisfatório. Hobbes considerara que, para garantirem a segurança das suas vidas e das suas pessoas, os indivíduos teriam de prescindir da sua liberdade e colocar todo o poder nas mãos de um soberano absoluto. De outra forma, pensava Hobbes, o carácter predatório da natureza humana levaria a uma constante guerra de todos os homens contra todos os homens. Porém, Locke percebeu que a conclusão de Hobbes era parte do problema e não parte da solução. Ao admitirem que o poder deveria ser concentrado num soberano absoluto, os homens perderiam não só a sua liberdade, mas também a segurança que julgavam poder alcançar. Eles ficavam à mercê desse mesmo poder absoluto que poderia, com facilidade, atentar contra as suas vidas e a sua integridade física.
Para Locke, a liberdade natural dos homens não equivale a eles poderem fazer tudo o que lhes apetece. A liberdade que cada um tem de dispor de si mesmo é acompanhada pela obrigação de respeitar a liberdade do outro, assim como a segurança da sua pessoa. Mas, como esta obrigação nem sempre é respeitada, torna-se necessário encontrar um poder que puna todos os que atentem contra a liberdade e segurança alheias. Para isso, os indivíduos não precisam de abdicar da sua liberdade em geral, mas apenas de uma liberdade específica: a de perseguir e punir os criminosos pelas suas próprias mãos. Por outro lado, os indivíduos não devem entregar esse poder a um soberano independente da comunidade, mas atribuí-lo à própria comunidade. Esta, por sua vez, pode delegar esse poder em representantes que façam as leis, nomeiem juízes para julgar os infractores e vigiem o poder que executa as leis e as penas.
As sociedades demo-liberais contemporâneas adoptaram, grosso modo, a solução de Locke. Ela aconselha que não se prescinda de mais liberdade individual do que a estritamente necessária para garantir a segurança. O problema residual e que não é pequeno reside no facto de o estritamente necessário variar com as circunstâncias. Quando os perigos para a segurança são maiores, tende-se a atribuir mais poderes aos que devem perseguir e punir os criminosos. Quando esses perigos são menores, pode-se manter uma mais ampla esfera de liberdade.
No momento actual, as circunstâncias que permitiam um balanço largamente favorável à liberdade deixaram de existir. Ao contrário do que dizem os líderes políticos do mundo livre, o terrorismo islâmico está a modificar o nosso modo de vida. São prova disso a legislação anti-terrorista já adoptada em vários países como o USA Patriot Act ou a Prevention of Terrorism Bill na Grã-Bretanha assim como aquela que ainda está para vir. Parece inevitável que, no futuro imediato, as sociedades liberais continuarão a conceder um pouco mais à segurança e um pouco menos à liberdade. Mas convém estarmos atentos. Mesmo em Estados de inspiração Lockeana, aqueles que exercem o poder tendem sempre a abusar dele. Podem punir terroristas e outros criminosos, mas também alguns inocentes.
De PGFreire a 30 de Agosto de 2005 às 09:51
Li recentemente, no âmbito desta discussão trazida à ribalta pelos incidentes terroristas dos últimos tempos, que Benjamin Franklin teria dito algo parecido com "Quem está disposto a sacrificar parte da sua liberdade para ter mais segurança, não merece ter nem uma, nem a outra".
Imagino que ele não o tenha dito no contexto de ataques terroristas. Do mesmo modo, Locke também não terá conhecido nada de parecido, nem sequer teve a oportunidade de viver numa sociedade multi-étnica e multi-religiosa como a de hoje (particularmente como hoje o é em países como os Estados Unidos e a Inglaterra).
Eu tendo a concordar mais com Benjamin Franklin do que consigo, caro Mão Invisível... É que defender a flexibilidade das liberdades face às ameaças de segurança, é algo muito perigoso. Porque quem para nossa segurança nos pede a mão, a seguir vai querer o braço.
Os estados democráticos do nosso tempo prevêm o lei marcial ou estado de guerra para as situações muito graves. A entrada em estado de guerra naturalmente tem que ser aprovado nas mais altas instâncias do estado democrático, até porque se trata de uma situação que pode por em risco a própria democracia.
Para situações menos críticas tomam-se apenas medidas operacionais: alteração do estado de alerta das forças de segurança, reforço dos contingentes de segurança (se necessário com o envolvimento de forças militares), incremento das acções de policiamento e fiscalização, etc.
Inclusive, pode-se proceder à divulgação pública de recomendações de segurança, sugerindo às pessoas que se imponham limitações à sua liberdade, para sua própria segurança. Agora mexer nas liberdades individuais consagradas pelas constituições e leis "a quente" e no rescaldo de situações como estes ataques terroristas, sabendo que a discussão vai ser fortemente influenciada pela emoção dos acontecimentos... isso é muito perigoso!! É que essas "medidas de excepção" entram com força de lei e depois quero ver quem é que as tira de lá!
Acredito que os interesses que se movem nos bastidores dos governos americano e inglês que os levou à defesa das medidas que refere, fizeram-no com a consciência de que o abalo no sentimento democrático favoreceria de forma única a sua aprovação. E tinham razão! Resta saber quais os objectivos ocultos destas "mãos invisíveis". Infelizmente, não acredito que seja apenas a segurança do povo...
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