Sábado, 20 de Agosto de 2005
Défice quê?!

Por:

Vítor Bento



Com a entrada no euro, gerou-se uma tendência para desvalorizar o défice externo, sustentando que a restrição económica relevante passou a exercer-se directamente ao nível das empresas e das famílias e que a sua gestão é, portanto, da exclusiva responsabilidade de cada unidade económica.

Alguns vão mais longe, argumentando que os equilíbrios macroeconómicos nacionais deixaram de ter relevância para a política económica e que, como tal, os governos se deverão empenhar em intervir mais próximo da “microeconomia” – nas empresas e na “reorganização” de sectores – e na construção de infra-estruturas.

Não é difícil perceber a influência desta corrente nos desmandos políticos cometidos ao nível das grandes empresas sectoriais (onde o Estado mantém posições), na instabilidade de gestão das empresas públicas, na profusão e efemeridade de programas e estruturas de “apoio às empresas” (onde cada Ministro, na sua fugaz passagem pelo governo, projecta a idiossincrasia pessoal), na promoção de grandes investimentos estratégicos (que me recordam a explicação de Miguel Beleza para distinguir entre investimentos rentáveis e estratégicos, ensinando que estes últimos designam precisamente os que não são rentáveis!) e, obviamente, na desvalorização do descontrolo das contas públicas (que só merece atenção porque Bruxelas a isso obriga).

Se eu não fosse economista, tivesse que me basear apenas no bom senso e me dissessem que, na média dos últimos 6 anos, dos 175 países do Mundo só havia 2 que apresentavam um desequilíbrio externo (T. Correntes) mais elevado do que Portugal (Azerbeijão e Estónia, mas com taxas de crescimento económico muito mais elevadas); que dos 32 países com défices superiores a 2% do PIB (Portugal regista 8%), o nosso apresenta o crescimento mais lento; que das 29 economias avançadas, Portugal (sendo a mais pobre) é a que apresenta, simultaneamente, o maior défice externo e (com excepção da Alemanha) o menor crescimento do PIB; se me dissessem tudo isso, eu ficaria preocupado e iria achar que, com euro ou sem euro, tais recordes em matéria de défice externo não podiam ser coisa boa.

E de facto não são! Embora o défice externo já não indicie uma iminente ruptura financeira do País, continua a dar-nos informações fundamentais sobre desequilíbrios que podem ter consequências muito graves se não forem corrigidos atempadamente. Assim, o demorado e enorme défice externo português diz-nos, entre outras coisas, que a sociedade portuguesa está, há demasiado tempo, a viver muito acima das suas possibilidades, sustentando-se com endividamento estrangeiro. E, lido em conjunto com o crescimento medíocre, diz-nos que a economia portuguesa não tem capacidade de gerar a riqueza necessária para sustentar o actual nível de vida. Como qualquer pessoa de bom senso facilmente percebe, não se pode viver indefinidamente do crédito. Por isso, os dois indicadores têm vindo a advertir-nos para a insustentabilidade do nível de vida a que nos habituámos e para a consequente necessidade de o ajustar às possibilidades, bem como a de melhorar a nossa capacidade de geração de riqueza. Em termos de “economia antiga” quer isto dizer que seria necessário reduzir a despesa e estimular a criação de valor “transaccionável”.

E, com euro ou sem euro, o ajustamento vai ter que ser feito, seja a bem, seja mal. Se se tivesse reagido atempadamente aos sinais “clássicos” – presentes pelo menos desde 1999 – teria sido possível atalhar mais cedo o problema e minimizar os custos sociais: tirar “pressão da procura” através da gestão orçamental, moderar a progressão salarial para preservar competitividade e criar mais riqueza (moderando também a procura), incentivar a produção de bens transaccionáveis (em vez de não transaccionáveis como aconteceu com a persistente aposta nas grandes obras públicas), valorizar o capital humano e reformar o Estado (para reduzir os “custos de contexto” e aumentar a eficiência da economia). Não daria lugar a qualquer milagre, mas, muito provavelmente, a situação ter-se-ia agravado menos e ter-se-ia preparado mais cedo o terreno para a recuperação que será sempre demorada.

Em vez disso, tem-se “deixado andar”, confiando nas obras públicas como (falso) dinamizador da economia. Este caminho poderá alimentar transitoriamente a tranquilidade política, mas manterá o País na senda do empobrecimento relativo (e provavelmente absoluto) em que já se encontra: nos últimos 5 anos a economia cresceu a uma média de 0,5% ao ano e é preciso recuar ao fim da 2ª guerra mundial para encontrar um período de 10 anos seguidos onde a economia portuguesa tenha crescido tão pouco como nos últimos 10 (apesar da Expo, do Euro-2004, das SCUTs, etc.). O desemprego continuará a aumentar, as famílias mais pobres e sobre-endividadas poderão entrar em ruptura financeira e as desigualdades sociais vão agravar-se (sobretudo entre quem tem e não tem emprego). A emergência de uma grave crise social, com profundas e imprevisíveis implicações políticas não será, pois, o destino menos provável deste caminho. Mas os sinais estão lá há muito tempo...



publicado por psylva às 19:47
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Outubro 2007
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Semear futuras crises

As ideias de Luís Filipe ...

Tufão imobiliário

Ordem, custos e esbanjame...

Política, ideias e pessoa...

HÁBITOS DE RICO E A ARTE ...

As reformas da Chrysler

O que resta da esquerda?

O Governo e a Igreja

Um estado menos “keynesia...

arquivos

Outubro 2007

Julho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

blogs SAPO
subscrever feeds