Sábado, 20 de Agosto de 2005
A grande solução


No curioso mundo do dr. Vitorino, o Estado é o sujeito de todas as acções: “incentivar”, “garantir”, “definir”, “ordenar”e “pagar”.

Era de esperar. Ardem as árvores, e o país transborda logo com silvicultores de bancada. Num mês, ficámos a saber tudo sobre os matagais a que, com um patriotismo pomposo, chamamos “floresta”. Aprendemos a odiar a monotonia vulnerável dos pinheiros e eucaliptos. Já somos capazes de criticar, em coro afinado, o desleixo dos proprietários ou a desordem do casario. Na televisão, o dr. António Vitorino destilou fluentemente a sabedoria nacional sobre o assunto. E deu logo a inevitável grande solução: o Estado. No curioso mundo do dr. Vitorino, o Estado é o sujeito de todas as acções: “incentivar”, “garantir”, “definir”, “ordenar”, e ... “pagar”. Os cidadãos existem passivamente, para serem “mobilizados” e “compensados”. Tudo depende do Estado e da sua “política de ordenamento florestal”. Porquê? Porque, como seria de esperar, a causa do mal é o “lucro no mercado”, razão pela qual os “proprietários” teriam forrado as nossas encostas com “árvores de crescimento rápido”.

Eis tudo explicado e tudo resolvido. Mas a história podia ser contada de outra maneira. Em Portugal, o Estado foi demasiadas vezes um instrumento para aplicar o que alguns políticos iluminados imaginaram ser as receitas do progresso. A ocupação intensiva do território, através da cultura e da “florestação”, foi uma dessas receitas. Em nome do progresso, ignoraram-se condições naturais, atropelaram-se tradições históricas, e questionou-se o direito de propriedade. O Estado apossou-se de terrenos comunitários para os cobrir de arvoredos instantâneos. A partir de 1919, obrigou os proprietários de incultos com mais de 100 ha a fazer o mesmo. E quando as populações, ingratamente atrasadas, ousaram resistir à grandiosa visão florestal, os iluminados recorreram à força armada para as fazer ver a luz. Aconteceu no Gerez e na Estrela em 1888-1889. Aquilino Ribeiro tirou de incidentes semelhantes um romance: Quando os Lobos Uivam (1958).

Esses pinhais-de-artifício pertencem menos ao cadastro do mercado, do que ao catálogo de desvarios da nossa política desenvolvimentista. Da Ota para trás, a lista é grande. Graças a um complicado sistema de protecção alfandegária, Portugal chegou a ser um dos mais esforçados produtores de trigo, quando era um dos países europeus com menos condições para essa cultura. Em resultado, Lisboa pagou, durante décadas, o pão mais caro da Europa, e os solos do Alentejo foram submetidos a uma erosão inútil. Mas os iluminados, que agora exigem aeroportos, queriam então um país autosuficiente em trigo e madeira, independentemente dos custos. E assim, com muita “mobilização” e muitas “compensações”, se fizeram pinhais e searas, proporcionando bons negócios a alguns. O Estado dos iluminados foi sempre melhor a dar lucros do que a aplicar a lei. E foi também sempre mais eficaz a destruir do que a repor qualquer ordem. Demasiadas vezes, a passagem do tempo revelou apenas a imprevidência dos iluminados. A “floresta” é um exemplo. Quando as populações abandonaram os campos, o arvoredo do nosso Grande Salto em Frente ficou para trás, como pastagem para incêndios.

Em dois séculos, esquecemos muita coisa e não aprendemos nada. Há um problema, e imaginamos logo a solução sob a forma de um decreto-lei que justifique o emprego de mais funcionários, ou sirva para regalar empresários amigos. Se é assim que queremos viver, ou se já não somos capazes de viver de outra maneira, então o melhor é habituarmo-nos aos incêndios, aos défices, e à desordem. Porque o que diz o dr. Vitorino não é solução. É apenas uma grande parte do problema.


publicado por psylva às 19:47
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Outubro 2007
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Semear futuras crises

As ideias de Luís Filipe ...

Tufão imobiliário

Ordem, custos e esbanjame...

Política, ideias e pessoa...

HÁBITOS DE RICO E A ARTE ...

As reformas da Chrysler

O que resta da esquerda?

O Governo e a Igreja

Um estado menos “keynesia...

arquivos

Outubro 2007

Julho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

blogs SAPO
subscrever feeds