Sexta-feira, 25 de Agosto de 2006
Expansão democrática

Com George W. Bush e o 11 de Setembro de 2001, a visão expansiva da democracia ganhou novo fôlego. Mas mudou também na sua natureza.

João Cardoso Rosas

A democracia liberal expandiu-se extraordinariamente no mundo desde meados dos anos setenta. Samuel Huntington popularizou este processo com a ideia de uma “vaga” de democratização, iniciada em Portugal em Abril de 1974 e potenciada pela queda do muro de Berlim em 1989. No final do século, o optimismo quanto à democratização da generalidade dos países do nosso mundo tornou-se predominante no Ocidente e passou a ocupar um papel central na política externa dos Estados Unidos.

A mudança foi particularmente visível durante a presidência de Bill Clinton. Este tinha a enorme vantagem de ser um político atento à esfera internacional e pouco dado a fechamentos ideológicos. Por isso favoreceu a expansão da democracia, mas com as devidas cautelas, especialmente no Médio-Oriente.

Com a presidência de George W. Bush e o 11 de Setembro de 2001, a visão expansiva da democracia ganhou novo fôlego. Mas mudou também na sua natureza. Tornou-se mais ideológica e dogmática.

Muito se falou na influência do neoconservadorismo. Este tem – ou tinha, uma vez que está morto e enterrado – a ideia de que cabia aos Estados Unidos andar pelo mundo a derrubar todos os regimes não democráticos, a que os neoconservadores chamavam, com típica falta de rigor, “fascistas”. É a partir deste enquadramento ideológico neoconservador que se entende o plano para democratizar o Médio-Oriente a partir da invasão e subsequente democratização do Iraque.

Como é sabido, as coisas não correram bem. Embora os neoconservadores tendam a dizer que o erro não esteve no plano, mas na sua execução, há muito que se tornou óbvio que o próprio plano tinha pés de barro. Todos conhecemos as suas consequências: o Iraque mergulhou no caos, os movimentos terroristas ficaram reforçados aos olhos do mundo muçulmano, o Irão tornou-se mais agressivo, as teocracias árabes continuaram no poder, o Hamas ganhou as eleições na Autoridade Nacional Palestiniana, o Hezbollah reforçou-se no sul do Líbano, e por aí adiante. Assim chegámos à crise actual. Ela mostra-nos que, no Médio-Oriente, as coisas continuam a ser aquilo que eram, mas de um modo agravado.

Apesar das limitações inerentes ao seu carácter étnico, o Estado de Israel permanece como a única democracia liberal na região. A ideia de um novo Médio-Oriente, retoricamente repetida ainda esta semana pela Secretária de Estado norte-americana, não passa de uma miragem.

Do ponto de vista da expansão da democracia, portanto, o mínimo que se pode dizer é que o plano neoconservador e a acção da administração Bush falhou com estrondo e com dor. A ‘hybris’ democratizante, pelo menos no Médio-Oriente, parece ter incendiado tudo aquilo em que tocou. Talvez porque esqueceu o velho princípio de auto-ajuda de Stuart Mill: não se pode democratizar um povo contra a sua vontade. Ou ainda porque esqueceu que o essencial num regime democrático é o respeito pelos direitos fundamentais e não a realização de eleições competitivas. Ou seja, o essencial da democracia é o seu fundamento liberal, pacientemente construído, e não a rápida implantação dos mecanismos eleitorais que permitem a selecção de quem ocupa o poder.

Diante do falhanço, há várias atitudes possíveis. A primeira é a daqueles que, à direita e à esquerda, tudo aproveitam para alimentar o seu anti-americanismo primário (e, já agora, o anti-semitismo). A segunda é a dos que preferem a visão dita realista, mais favorável a deixar correr e a permitir que “eles se matem uns aos outros”. Nenhuma destas atitudes é racional ou convincente. Ao prescindirem do ideal democrático diante do falhanço de uma estratégia específica, ambas deitam fora a criança com a água do banho.

Assim, é talvez o momento de recordar que a democracia liberal é e continuará a ser o melhor regime. Ela é aquele regime que permite o respeito pelos direitos fundamentais de cada indivíduo e a substituição dos governantes sem derramamento de sangue. A democracia liberal é o enquadramento que permite a uma sociedade viver em liberdade e em paz com as outras democracias e, se a governação não for demasiado má, prosperar economicamente.

A ideia de que devemos desejar para os outros aquilo que temos de melhor para nós mesmos deve levar-nos a favorecer a expansão da democracia liberal no mundo. Mas não nos deve conduzir à ‘hybris’ democrática, potenciada pelo neoconservadorismo ou por qualquer outra visão ideológica mal alinhavada. A expansão da democracia passa sempre pelo exemplo dos Estados democráticos e pelo apoio aos democratas onde quer que eles estejam. Mas não é possível fazer democratas à força e à pressa.


publicado por psylva às 09:29
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