Sexta-feira, 10 de Junho de 2005
Artigo de Miguel Sousa Tavares (muito bom)
Quem paga a conta?
Como alguém já disse, a divulgação das medidas governamentais de combate ao défice tiveram, pelo menos para já, um mérito: a revelação de uma infinidade de situações de privilégio e de excepção escondidas debaixo dos tapetes da administração pública. Mesmo eu, que há anos vivo amarrado à tese de que existem fundamentalmente dois tipos de cidadãos em Portugal - os que pagam para o Estado e os que dele recebem -, nunca imaginei que a dimensão da diferença fosse tão abissal.
Não se trata, obviamente, de contestar a legitimidade de quem escolheu fazer uma carreira profissional dentro do Estado. Ao contrário de muitos, não me move qualquer preconceito contra os servidores públicos nem contra o desempenho das suas funções tradicionais por parte do Estado. Pelo contrário, à medida que avançamos para dentro do mundo sinistro do capital sem pátria, sem regras e sem responsabilidades sociais, mais essencial entendo a função reguladora do Estado, o último obstáculo a um capitalismo desumanizado e esquecido de preocupações éticas. De igual modo e também ao contrário de muitos outros, não vejo claramente, no caso português, que aquilo que é público funcione necessariamente pior que aquilo que é privado. Conheço, sim, muitos exemplos de empresas ou serviços que outrora eram públicos e agora são privados, funcionando pior e mais caro do que anteriormente.
E não se trata também de pôr em causa o dever que o Estado tem de acorrer às situações de necessidade e de carência, no domínio da saúde, da educação, das pensões sociais de desemprego, de reforma, etc. É para isso que se pagam impostos, para que o Estado proceda através deles à correcção das desigualdades sociais mais aberrantes, em termos de não haver ninguém caído na rua e deixado por conta própria. Enfim, para não maçar os leitores, sou a favor dessa coisa tão desacreditada pelos intelectuais de esquerda e tão temida pelo mundo dos negócios que se chama social-democracia: o sistema de organização política de sociedades mais justo que eu já vi a funcionar.
Mas o que se passa em Portugal é uma coisa diferente. Aqui, o comum das pessoas acha que a social-democracia é um contrato unilateral, através do qual toda a gente tem direitos a haver do Estado, sem as respectivas obrigações. O cidadão comum acha que tudo lhe é devido, mesmo que ele próprio não cumpra a parte que lhe é devida: declarar e pagar todos os impostos que lhe cabem, não meter baixa por doença quando não lhe apetece trabalhar, não recusar trabalho quando recebe subsídio de desemprego, não recorrer a fundos públicos para investimentos que não faz, não reclamar apoios e subsídios porque chove ou porque faz sol, porque não há mercado para aquilo que produz e que não tem qualidade. Todos estes se acham eternamente em crédito sobre essa coisa indefinida a que chamam Estado - mas que não é nada indefinida, é sim a outra metade das pessoas, a que não reclama e apenas paga.
Já sabíamos que Portugal entrou, de há anos para cá, em défice crónico das contas públicas. Estagnada a economia, diminuiu a colecta de impostos e ficou a nu a forma de funcionamento habitual do Estado: gastar mais do que tem. Também sabíamos que era difícil inverter esta situação, visto que a esmagadora parte das despesas públicas é constituída por despesa fixa, isto é, pelo custo do próprio funcionamento do sistema, sobretudo o pagamento dos funcionários e dos seus encargos sociais. O absurdo que daqui resulta é a inversão da função última do Estado: o Estado endivida-se, não porque investe muito no país, mas porque gasta quase tudo a garantir a sua própria existência. Se analisássemos serviço por serviço, na saúde, na educação, na justiça, nas Forças Armadas, onde quer que fosse, encontraríamos centenas ou milhares de situações perfeitamente autofágicas: tudo o que se recebe, ou mais, é gasto no próprio serviço, nada sobrando para servir os outros.
Tudo isto nós já sabíamos. Já sabíamos também que os funcionários públicos gozam de prerrogativas que cá fora ninguém mais goza: têm horários geralmente mais reduzidos, metem mais baixas do que os outros trabalhadores, recebem muito mais por baixa do que os outros, metem licença quando querem, são promovidos automaticamente sempre com a classificação de "excelente" passados três ou quatro anos na mesma categoria, reformam-se mais cedo e têm pensões de reforma percentualmente maiores. Tudo isto nós já sabíamos, assim como sabíamos que alguns sectores - políticos, gestores públicos, magistrados ou militares - gozavam ainda de um regime de excepção dentro do regime privilegiado que já é o da função pública, relativamente ao sector privado.
Aquilo que não sabíamos é que metade - metade! - da função pública integra uma coisa chamada "corpos especiais", que beneficia de um estatuto ainda mais especial, no que respeita a férias ou tempo de trabalho para a reforma, contagem do tempo de trabalho, idade de reforma ou benefícios salariais particulares devido ao "particular desgaste", "permanente disponibilidade" ou "ónus específico da função". E não imaginávamos que nesta categoria "especial" coubessem, afinal, todos ou quase todos: professores universitários e do ensino básico, médicos e enfermeiros, juízes e magistrados do Ministério Público, militares, polícias, espiões, guardas florestais, prisionais e do Serviço de Fronteiras, bombeiros, notários, trabalhadores portuários e das portagens de auto-estrada, trabalhadores dos aeroportos, do Instituto de Medicina Legal, da Inspecção Económica, da Meteorologia, dos produtos florestais, químicos ou têxteis, da Autoridade contra a Corrupção, das empresas públicas e administrações hospitalares, da toxicodependência, da aviação e tráfego aéreo, das Lojas do Cidadão, da administração local e dos matadouros públicos... ah, mas só nas Regiões Autónomas!
Temos de acreditar, pois, que toda esta gente sofre de "um particular desgaste" e revela uma "permanente disponibilidade" para o trabalho, que é exclusivo da sua função, do seu trabalho e do estatuto - cá fora não existe nada de semelhante, nem sequer aproximado. Como aquele juiz que há dias aqui escreveu um texto a convencer-nos de que, dos três meses de férias que o seu estatuto lhe garante, só goza nove dias por ano - o resto do tempo passa-o numa lufa-lufa constante, de comarca em comarca, "fazendo estatísticas" e redigindo sentenças cíveis, e isto enquanto trabalha todos os dias "até às três ou quatro da manhã a despachar processos".
Não temos, pois, que nos admirar se descobrimos que basta ser-se durante seis anos vice-governador do Banco de Portugal para ganhar direito a uma pensão vitalícia de 8000 euros por mês. Ou que professores se reformem ao fim de trinta anos de trabalho devido ao "especial desgaste físico e psicológico de lidar com crianças", e que, no último ano antes da reforma, recebam "horário zero", isto é, nada para fazer. Que os gestores públicos a primeira coisa que fazem após a nomeação seja convocarem uma "comissão de vencimentos" para estabelecer quanto mais é que vão ganhar. Ou que os enfermeiros estejam "sujeitos a muitas lesões lombares ou musculares, o que justifica a reforma antecipada, que lhes permite melhor qualidade de vida", conforme explicou um sindicalista que, certamente, nunca pensou, sei lá, nos operários da construção civil, por exemplo.
Esqueçam, portanto, tudo o que imaginavam sobre vocações, dedicação ao trabalho, orgulho profissional. Parece que, quando se trabalha para o Estado, a violência é tamanha, seja a vigiar a floresta ou o défice, a combater pela pátria, a educar criancinhas ou a abater vacas no matadouro do Funchal, que o único desejo legítimo é passar à reforma quanto mais cedo melhor. E tudo seria inteiramente legítimo não fosse essa pequena chatice de não haver dinheiro que chegue para pagar isto tudo e não restar ao Estado outra hipótese que não a de subir os impostos e o tempo de trabalho para os que não dependem de si. Será que os sindicatos da função pública já pensaram que, por cada trabalhador deles que se quer reformar mais cedo, há um cá fora que tem de trabalhar mais tempo ou pagar mais impostos para sustentar essa regalia? Jornalista