Domingo, 5 de Junho de 2005
O que o liberalismo não é
Em primeiro lugar, liberalismo não é socialismo estatista. Em segundo lugar, não é conservadorismo.
O conceito de liberalismo é um continente com muitos conteúdos, como aqui expliquei há dias: mercados regulados, liberdades básicas, democracia representativa. Além disso, liberalismo é também um conceito que engloba concepções alternativas: liberalismo clássico ou novo liberalismo; liberalismo de direita ou de esquerda. Embora concordando com a centralidade das liberdades, os liberais dividem-se quanto à importância relativa que elas têm. Por exemplo, alguns dão maior peso às liberdades económicas, como é o caso do liberalismo clássico e de direita; outros enfatizam a necessidade de dotar os indivíduos com os meios que confiram maior valor às suas liberdades civis e políticas, como acontece com o novo liberalismo de esquerda.
Mas, se é importante marcar a larga abrangência do pensamento liberal, é também conveniente referir os seus limites. Para além de tudo aquilo que o liberalismo é, ou pode ser, convém explicitar aquilo que ele não é, em nenhuma circunstância. Em primeiro lugar, liberalismo não é socialismo estatista. Aqueles socialistas que, no nosso quadro constitucional, são sempre desfavoráveis à iniciativa privada e consideram que o Estado é a solução para todos os problemas, não pertencem certamente à família liberal. Eles são os herdeiros, mais ou menos assumidos, do marxismo e do socialismo de Estado.
Em segundo lugar, liberalismo não é conservadorismo. O liberalismo está longe das versões estatistas do conservadorismo pelas mesmas razões que o afastam das versões estatistas do socialismo. Mas o liberalismo também não deve ser confundido com o conservadorismo mais liberalizante em termos económicos. Este é favorável à liberdade económica mas, por alguma razão, é menos sensível às outras liberdades. Tende a olhá-las como perigosas e não como condições de possibilidade da realização humana.
Apesar destas oposições, que afastam os liberais dos extremos do espectro constitucional, eles convivem bem com todos os que se enquadram nesse espectro. Convém não esquecer que os conservadores e os socialistas foram, em muitas circunstâncias, aliados dos liberais. Basta que recordemos esse extraordinário conservador que foi Winston Churchill. Provavelmente, ninguém mais do que ele contribuiu, no século XX, para a preservação das sociedades liberais e democráticas. A nível doméstico, podemos invocar o exemplo de Mário Soares. No tempo em que professava ainda o socialismo estatista que mais tarde iria meter na gaveta, Soares defendeu como nenhum outro a democracia liberal portuguesa contra as forças do totalitarismo comunista.
Os combates de Churchill e Soares recordam-nos ainda que o liberalismo não é, decididamente, totalitarismo. Este, seja nazi-fascista ou comunista, está nos antípodas do liberalismo. O totalitarismo é por vezes visto como a outra face da moeda em relação ao liberalismo. Mas é mais do que isso: é a sua negação ponto por ponto. Por outro lado, os autoritarismos (como o salazarismo) estão em clara colisão com o pensamento e a atitude liberais, negando o exercício das liberdades básicas e um processo político democrático.
Por fim, liberalismo não é fundamentalismo, islâmico ou de qualquer outra denominação. Os fundamentalismos procuram impor uma visão completa do mundo e da vida a toda a sociedade, incluindo àqueles que dissentem. Pelo contrário, o liberalismo admite que vivemos numa sociedade pluralista. Neste quadro, devemos aceitar processos de debate público, negociação pacífica e votação como forma de decidir sobre aquilo que nos divide. No actual combate contra os fundamentalismos, os liberais esperam ter a companhia dos seus parceiros no espectro constitucional: socialistas e conservadores. É importante que eles não faltem à chamada.
Em primeiro lugar, liberalismo não é socialismo estatista. Em segundo lugar, não é conservadorismo.
Os combates de Churchill e Soares recordam-nos ainda que o liberalismo não é, decididamente, totalitarismo.