Sexta-feira, 4 de Março de 2005
A nossa vida democrática parece por vezes uma tragédia grega
. A última eleição renovou velhos cenários onde os partidos, apesar dos esforços, voltaram a cair. Parece que, como nos mitos clássicos, um destino funesto determina sem apelo a sua sorte.
O Partido Socialista, por exemplo, repete o azar de chegar ao Governo com o País em crise e precisando de medidas dolorosas e difíceis. Foi assim logo quando Mário Soares ganhou as primeiras legislativas e formou Governo em 1976. O choque do petróleo de 1973, a revolução de 1974 e a descolonização de 1975 tinham deixado Portugal num estado lastimoso. Foi inevitável chamar o Fundo Monetário Internacional em 1977 e aplicar o difícil programa de austeridade. O País recuperou o equilíbrio, mas não houve gratidão para quem o fez. Nas eleições seguintes, em Dezembro de 1979, o PS teve uma grande derrota.
A Aliança Democrática criou em seguida, com o segundo choque petrolífero, uma crise ainda maior que a primeira. Por isso, quando o PS voltou a ganhar em 1983 e Mário Soares regressou, foi preciso voltar a chamar o FMI e aplicar nova austeridade. Também aqui não houve gratidão e no fim da crise o PSD ganhou as eleições e seguiu-se o longo consulado maioritário de Cavaco Silva. A maldição do PS repetia-se.
A terceira crise económica de 1992-93 surgiu e acabou dentro do Governo do PSD. Assim, quando o PS teve a terceira vitória em 1995 e António Guterres formou Executivo, o partido governou pela primeira vez em período de crescimento. O enguiço parecia quebrado.
Infelizmente, Guterres repetiu o erro de Balsemão e criou uma crise que acabou por o afastar. O Governo caiu, mas isso não alterou o padrão era agora a nova AD quem tinha de aplicar austeridade. O PS podia esperar voltar com a crise acabada e o PSD punido pelas dificuldades.
Mas não foi isso que aconteceu. O Governo maioritário PSD-PP deixou o País, em certos aspectos como o desemprego, pior que em 2002. Assim, José Sócrates começa hoje o primeiro mandato maioritário do PS com a necessidade de impor austeridade e tomar medidas duras. Como numa peça de Sófocles, a maldição que perseguiu Soares regressa após 20 anos.
A sorte que assombra o PSD é mais sinistra. Foi o primeiro a liderar uma maioria absoluta em 1979, mas pouco depois um trágico acidente vitimou Sá Carneiro e Amaro da Costa, os seus líderes carismáticos. Violentamente atingido, o partido virou-se para Pinto Balsemão, um político com talento, mas não para primeiro-ministro. Seguiram-se anos de desorientação e uma crise que, apesar da maioria, apeou o Governo.
Os sucessos da década de Cavaco Silva fizeram esquecer essa fatalidade. Mas 25 anos depois ela regressou ao PSD. Durão Barroso, após Guterres, chefiou uma nova AD também com maioria e, ao fim de pouco tempo, também desapareceu. Não por avião mas por evasão. De novo o partido órfão escolheu um líder talentoso mas sem estofo para primeiro-ministro. Como no teatro de Ésquilo, o fio do destino repete o mesmo nó.
O CDS, como sempre, ao perder o líder, perde a personalidade e não sabe quem é. É o Édipo da política nacional.
Talvez a mais irónica fatalidade seja a da extrema-esquerda, com vitórias que acabam na irrelevância. Álvaro Cunhal em 1976 teve uns respeitáveis 15% e insistiu com afinco na "maioria de esquerda". Soares recusou o convite e preferiu governar sozinho em minoria. Isso, a prazo, determinou a longa descida eleitoral dos comunistas. Hoje, 30 anos volvidos, CDU e BE têm juntos quase tanto quanto Cunhal teve. O resultado anima-os a propostas tão extremistas quanto inúteis a maioria absoluta do PS anula as suas aspirações.
Assim, o actual quadro político recapitula velhos pesadelos, que regressam para assombrar os partidos.
A democracia inclui epopeias dignas de Eurípides.
Mas esta constatação não deve alimentar um outro estilo bem nacional, o fadinho desolador. As eleições mostraram que, apesar de tudo, o sistema funciona hoje muito melhor que a podridão do liberalismo ou o caos republicano.