Terça-feira, 20 de Junho de 2006
O problema americano


Joseph Stiglitz



Qualquer abordagem aos desequilíbrios comerciais deverá centrar-se no principal desequilíbrio global, isto é, o dos Estados Unidos da América.

A chamada reunião de ”Primavera” do Fundo Monetário Internacional (FMI) decorreu num clima de esperança e ficou marcada pelo novo mandato de ”vigilância” dos desequilíbrios comerciais que contribuem, significativamente, para a instabilidade global. Esta nova missão reveste-se de uma importância crucial, tanto para a saúde da economia global como para a própria legitimidade do FMI. Mas será que o Fundo está à altura do desafio?

Como é óbvio, existe algo de peculiar num sistema financeiro global onde o país mais rico do mundo, os EUA, pede emprestado mais de 2 mil milhões de dólares por dia aos países mais pobres – ao mesmo tempo que lhes ensina os princípios do bom governo e da responsabilidade orçamental. Ou seja, as responsabilidades do FMI, encarregue de manter a estabilidade financeira global, são muitas e importantes: se, porventura, os restantes países perderem a confiança depositada nos EUA – cada vez mais devedores –, as eventuais repercussões sentidas nos mercados financeiros de todo o mundo serão enormes.

O desafio que o FMI tem pela frente é formidável. Como é óbvio, será importante que o Fundo se debruce sobre os desequilíbrios globais, em detrimento dos desequilíbrios bilaterais. Num sistema comercial multilateral, os grandes défices comerciais bilaterais são, frequentemente, contrabalançados por excedentes bilaterais registados nos outros países. A China pode estar interessada no petróleo proveniente do Médio Oriente, todavia, é provável que o Médio Oriente – onde a riqueza se encontra concentrada em poucas pessoas –, esteja mais virada para as malas Gucci do que para os produtos chineses produzidos em larga escala. Assim, é plausível que a China possua um défice comercial com o Médio Oriente, e um excedente comercial com os EUA, porém, estes equilíbrios bilaterais não reflectem a contribuição global da China para os desequilíbrios globais.

Os EUA, por seu lado, estão radiantes face ao sucesso obtido com o alargamento das funções do FMI, por acreditarem que, deste modo, as pressões sobre a China irão aumentar. No entanto, este júbilo é insensato. Se tivermos em conta os desequilíbrios comerciais multilaterais, os EUA encontram-se bem à frente dos restantes países. Em 2005, o défice comercial norte-americano ascendia a 805 mil milhões de dólares, enquanto que o somatório dos excedentes da Europa, Japão e China não ultrapassava os 325 mil milhões de dólares. Deste modo, qualquer abordagem aos desequilíbrios comerciais deverá centrar-se no principal desequilíbrio global, isto é, o dos EUA.

A avaliação dos desequilíbrios comerciais, isto é, encontrar um culpado e as respectivas soluções, possui um cariz económico e político. Os desequilíbrios comerciais resultam, por exemplo, das decisões tomadas pelas famílias acerca do quanto poupar e do quanto, e onde, gastar. Mas também são o resultado de decisões políticas: taxação efectuada e gastos realizados (que ajudam a determinar os níveis de poupança ou os défices de um país), regulamentação sobre o investimento, políticas de taxas de câmbio, entre outras. Mais, todas estas decisões são interdependentes.

Os enormes subsídios agrícolas concedidos pelos EUA contribuem, por exemplo, para o seu défice orçamental, o que se traduz num défice comercial ainda maior. Porém, os subsídios agrícolas acarretam consequências para a China e para outros países em desenvolvimento. Neste momento, uma reavaliação da moeda chinesa faria com que os seus agricultores ficassem em pior situação, todavia, num mundo caracterizado pelo comércio (mais) livre, os subsídios agrícolas norte-americanos resultam em preços agrícolas globais mais baixos e, consequentemente, em preços mais baixos para os agricultores chineses. É provável que os EUA, ao estenderem a sua generosidade às grandes empresas agrícolas, não tenham querido prejudicar os mais pobres, no entanto, esse era o resultado mais previsível.

Ora, tal coloca um sério dilema aos decisores chineses. A concessão de subsídios aos seus agricultores iria desviar verbas destinadas à educação, saúde e à concretização de projectos de desenvolvimento prioritários. Ou então, a China poderia tentar manter uma taxa de câmbio ligeiramente inferior aos valores contabilizados noutras circunstâncias. Mas será que o FMI, tido como justo e imparcial, deve criticar as políticas agrícolas norte-americanas ou as políticas cambiais da China?

Descobrir se os desequilíbrios comerciais de um determinado país são o resultado de políticas mal orientadas, ou uma consequência natural das suas circunstâncias, também não é tarefa fácil. O défice comercial de um país equivale à diferença entre o investimento nacional e as poupanças efectuadas, sendo que os países em desenvolvimento são, normalmente, encorajados a poupar o mais possível. Como é óbvio, a população chinesa fez mais do que responder a este tipo de conselho. No futuro, porém, talvez já nem seja preciso poupar a este ritmo, mas trata-se de reformas que não podem ser implementadas de um dia para o outro. Se bem que o investimento seja elevado, a perspectiva do seu aumento faz perigar a correcta aplicação de fundos, no entanto, se continuar a aumentar, pode vir a ser mal aplicado, o que dificulta a redução dos desequilíbrios comerciais da China.

Além do mais, uma alteração na taxa de câmbio chinesa teria pouco peso num eventual processo de alteração do défice comercial multilateral dos EUA – os norte-americanos podem optar pela importação do Bangladesh em detrimento dos têxteis chineses. É difícil avaliar se uma eventual alteração na taxa de câmbio da China teria um efeito significativo tanto na poupança como no investimento dos EUA.

Com o défice comercial dos EUA a assumir o papel de principal desequilíbrio global, as atenções devem recair sobre o método mais adequado para aumentar as poupanças nacionais – uma questão com que os governos dos EUA há muito se defrontam, e uma das mais debatidas na altura em que eu presidia ao Conselho de Consultores Económicos de Bill Clinton. Se bem que seja verdade que a preferência fiscal pode contribuir para um ligeiro aumento das poupanças privadas, a diminuição das receitas fiscais faria mais do que compensar os ganhos contribuindo, assim, para uma redução na poupança nacional. Posto isto existe apenas uma solução: reduzir o défice orçamental.

Resumindo e concluindo, os EUA são responsáveis tanto pelos desequilíbrios comerciais como pelas políticas que podem resolver rapidamente esta situação. A resposta do FMI à sua nova missão será um teste à sua legitimidade política. Na reunião da Primavera, o Fundo fracassou na escolha dos seus responsáveis máximos com base no mérito e independentemente da nacionalidade, e não garantiu uma distribuição justa e ponderada dos direitos de voto. A título de exemplo, é possível constatar que a maior parte dos países emergentes continua sem uma representação adequada.

Se a análise do FMI sobre os desequilíbrios globais não for pautada pelo equilíbrio, se não identificar os EUA como principal réu e se não canalizar as suas atenções para a necessidade de os EUA reduzirem os seus défices orçamentais, o século XXI será testemunha do inevitável declínio do FMI.


publicado por psylva às 14:14
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