Sábado, 1 de Janeiro de 2005
Algumas Falácias na Privatização de Serviços Públicos
Bennett McCallum, num artigo publicado em 1995 (1), referia as duas falácias que dominavam a discussão sobre a independência dos Bancos Centrais (BC). A moda era a "independência" e tudo o que ajudasse a "provar" os malefícios da não independência era bem vindo. A primeira falácia pressupunha que um BC não independente, sob o pretexto da redução da taxa de desemprego, contribuiria ele próprio para aumentar a inflação. A segunda falácia resultava da suposição que se o Governo fizesse um contrato, formal ou informal, com um BC independente do poder político, ele passaria a ter um comportamento eficiente. Quanto à primeira, McCallum, depois de se perguntar porquê atribuir a um BC não independente a prática sistemática de erros de política, insistia que o funcionamento dos BC não os obrigava a comportarem-se daquela forma não eficiente. No que respeita à segunda, ele chamava a atenção para o facto do problema não ser resolvido, mas sim recolocado ("it merely relocates it", p. 210).
Vem isto a propósito de quê? Tornou-se hoje um lugar comum falar da ineficácia das instituições estatais. Podendo o aprovisionamento da economia em bens públicos ser feito através de organizações privadas, o caminho está aberto para que esses serviços passem a ser feitos por estas organizações. Ora é aqui que entram os argumentos de McCallum. Por que razão têm esses bens de ser fornecidos de forma ineficiente? A tecnologia "eficiente" apenas é conhecida por agentes privados? Existe alguma característica tecnológica que impeça a eficiência quando produzidos pelo Estado? Trata-se da primeira falácia. Vejamos a segunda. Que milagre permite que a passagem da sua produção para privados resolva os problemas que são encontrados aquando da sua produção pelo Estado? Por vezes esta falácia surge escamoteada na entrega da produção à "iniciativa privada". Ora foi justamente porque a dita iniciativa não actuava, não podia actuar ou actuava mal, que esses bens foram produzidos pelo Estado. Estas duas falácias pretendem fazer passar um discurso político como um discurso técnico, um discurso económico e que por isso seria "neutral", mais conforme ao "interesse geral", não se limitando a satisfazer interesses de burocratas de Estado. Os Dulcamara sempre venderam os seus elixires. É verdade que a segunda falácia é por vezes acautelada: para "vigiar" a produção, em quantidade e em qualidade, é necessária uma entidade externa, "independente", que zele pelo "interesse geral". Trata-se afinal da segunda falácia ao quadrado. Robert Chang (2) apresentou-a como o problema do pai do Paco. Tendo ele mau aproveitamento escolar, que fez o espertalhão do pai? Arranjou um tutor. E já está! O problema foi resolvido! Tal como o Doutor Dulcamara já sabia, o elixir funcionaria se seguido por nova dose. O pai do Paco resolverá o problema arranjando um "inspector" para o tutor. Assim saberá se aquele último resolve o problema que ele sabiamente "resolveu". O problema de Nemorino era de mais fácil resolução. A solução do problema de mera recolocação da segunda falácia facilmente passa para uma segunda falácia ao cubo. Quem cuida de zelar pela correcção do comportamento da dita "entidade independente"? Não chegámos ainda à necessidade de "entidades supra-independentes", porque seriam claras as falhas do raciocínio.
A velha ideia do "político" esquizofrénico foi há muito abandonada. O governante não é o agente que procura o "interesse geral", em funções governativas, e o interesse pessoal, abandonadas estas. Que quero dizer? Primeiro, que o interesse dos actuais políticos por estas ideias nada deve ao "interesse geral". Segundo, que admitir a assunção de independência do inspector do tutor de Paco é gozar com o pai deste. Vejamos o primeiro caso. Estou convencido que se os tempos fossem de prosperidade a dita "iniciativa privada" não olhava com apetite para a "cereja" meia seca dos serviços públicos. A cedência a produtores privados de produções do sector público é uma das saídas para criar rendas de posição dos actuais políticos. Como agentes, optimizam a sua utilidade inter-temporal, é essa a sua visão do "interesse geral". As democracias têm funcionado bem porque as instituições democráticas são um entrave a esta optimização. Se convencerem que as suas opções são apenas a procura do mais eficiente, então estas restrições tornam-se menos fortes. A segunda questão é que não percebo como aceitar a ideia de independência, de alguém ou de uma instituição, pelo simples facto de lhe chamarmos "independente".
Criamos empresas que obedecem a uma "lógica privada", e entregamos a outras, a produção de bens até aqui produzidos pelo Estado. A ignorância das falácias de McCallum é essencial à sua justificação. A pouca vergonha é tal que até os políticos querem fazer parte das administrações dessas empresas. Os políticos que decidiram a sua criação! E que vamos ter? O fenómeno designado por "cherry-picking". São retiradas ao Estado produções com receitas consideráveis. Hoje as mais apetitosas, amanhã as que forem restando... Chegamos à situação em que o que resta não origina receitas de relevo! Atingiremos a "pauperização" dos serviços do Estado, a confirmação que as instituições públicas são verdadeiros exemplos de ineficiência.
O aprovisionamento de bens públicos é em geral feito em condições de ausência de concorrência. Não lhe devemos por isso chamar de "iniciativa privada". Não existindo concorrência e não havendo a possibilidade de insolvência destes produtores privados, porque o aprovisionamento tem de ser feito, deixam de existir as restrições que fazem a "eficiência" da produção privada (3).
Notas: (1) "Two Fallacies Concerning Central-Bank Independence", American Economic Review, May, 1995, pp. 207-11; (2) "Policy Credibility and the Design of Central Banks", FRB of Atlanta, QI, 1998; (3) Como chamou a atenção o Prof. João Jerreira do Amaral em artigo do Expresso em 30 de Outubro p.p..