Sábado, 1 de Janeiro de 2005
O Portugal de Eça de Queirós
Isso foi pretexto para vários comentadores notarem a semelhança entre as tristes descrições do genial romancista e as actuais. Ler os textos de 1871-72 é como ler os nossos jornais.
Ninguém referiu o profundo abismo que nos separa do Portugal de Eça.
A nossa taxa de mortalidade infantil nos finais do século XIX andava pelas 150 mortes por mil nascimentos; agora está em quatro. O analfabetismo caiu de 88% para menos de 9%. A esperança de vida ao nascer subiu de menos de 40 anos para mais de 75 e o nível de vida aumentou quase 40 vezes no período. O Portugal d'As Farpas estaria hoje ao nível da Serra Leoa, Tanzânia ou Burundi. A violenta prosa de Eça criticava outro mundo.
Mas em certo aspecto a semelhança é justa e adequada. Se no campo económico-social o País ultrapassou os seus sonhos mais ambiciosos, há coisas que se mantiveram ou até pioraram. Por exemplo, a qualidade dos políticos não subiu e a dos comentadores degradou-se muito desde o tempo em que a assinatura era de Eça ou Ramalho. Sobretudo permaneceu o elemento que estava no centro da crítica d'As Farpas e que volta a estar no núcleo da actual crise.
Este processo desde 1974 está ligado a três D's. Nos primeiros dez anos a preocupação central foi a Democratização; nos dez seguintes foi o Desenvolvimento; nos últimos dez anos veio a Dissipação. Passados os choques da revolução de Soares e da Europa de Cavaco, deu-se uma imperceptível mudança estrutural na sociedade. Desde Guterres, o País aproximou-se decisivamente do Portugal de Eça.
Basta abrir os jornais para notar que as preocupações nacionais centram-se hoje em vários grupos, com apenas uma única coisa em comum o seu sucesso é independente do progresso.
Políticos, jornalistas, funcionários, juízes, médicos, professores, polícias, militares, diplomatas são pessoas excelentes, com serviços decisivos ao País. Mas as suas promoções e remunerações estão, em geral, desligadas da dinâmica económica. O seu prestígio, carreira e salário provêm, não da competência e qualidade, mas de prescrições administrativas, regras burocráticas, negociações partidárias. São os primeiros a saber que, mesmo que o País estagne, vivem seguros e recebem diuturnidades.
O resultado está à vista. A recente divergência face à Europa não é grave, pois um país afasta-se sempre da média do grupo quando entra em queda. Preocupante é a hesitação e apatia da presente recuperação. Nestes meses de retoma da actividade, a economia portuguesa não reganha a vivacidade posterior às duas últimas recessões. O investimento não acelera. A Grécia e a Eslovénia já nos ultrapassaram. A paralisia vem dos que abancaram à mesa do Orçamento.
Ninguém como Eça para o descrever «Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficamos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó. Este caldo é o Estado.» (op.cit.p.29).