Quarta-feira, 1 de Dezembro de 2004
Apelo ao consumo e à tributação



Amar Bhidé*



Uma carga fiscal excessiva pode inibir os incentivos e travar o crescimento.

O contrário terá, aliás, o mesmo efeito. Por esta ordem de ideias, os governos com magras receitas fiscais não podem assegurar um serviço público de qualidade. Ou pior ainda, escassas receitas fiscais em países com economias deficitárias relevam, muitas vezes, de falhas no sistema tributário – e não propriamente das baixas taxas de juro –, na medida em que obstruem e acentuam o carácter improdutivo do empreendedorismo.

A Índia é um dos países que melhor ilustra a importância de um sistema fiscal bem estruturado. Em Bangalore, as empresas tecnológicas investiram na construção de ‘campus’ de elevada qualidade, conformes aos padrões de qualidade internacionais, rodeados de jardins cuidados e dotados de redes de comunicação de alta velocidade. Fora desses complexos, porém, deparamo-nos com esgotos a céu aberto, lixo espalhado pelas ruas e estradas a necessitar urgentemente de intervenções de fundo. O contraste é absoluto: o ritmo feérico a que as empresas de TI transmitem os seus dados para zonas remotas do planeta em nada se assemelha à indolência dos transportes locais. Por esta razão, muitas empresas dispõem de transporte próprio, negoceiam contratos exclusivos para fornecimento de água potável e instalam geradores autónomos para se salvaguardarem de eventuais cortes de energia. O Estado não pode assegurar as reparações, por falta de orçamento. A dívida pública indiana ultrapassa actualmente os 70% do PIB, pelo que mais de metade da colecta é canalizada para o pagamento de juros. Esta dívida não resulta, contudo, de despesas acumuladas no passado. Os gastos do governo indiano equivalem, hoje, a 15% do PIB, comparativamente à média dos países da OCDE, próxima dos 40% do PIB. Ora, isto leva-nos a concluir que os problemas financeiros da Índia resultam da má concepção e administração do sistema fiscal. Com efeito, apesar dos impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas respeitarem os requisitos internacionais, a matéria colectável não ultrapassa os 3,7% do PIB, isto é, cerca de metade da registada na Coreia do Sul e noutros “tigres” asiáticos.

Na Índia, o sector agrícola representa perto de um quarto do PIB, muito embora os agricultores mais abastados não paguem os impostos devidos. Grande parte das empresas que actua na área informática, ‘software’ e outras indústrias voltadas para a exportação goza de “isenção fiscal”, por oposição aos seus funcionários, cujos rendimentos são tributados pelo Estado. Em suma, a carga fiscal até pode ser branda, mas a fuga ao fisco é prática recorrente.

A fraude fiscal é uma constante, em muitos casos devido à falta de investimento em pessoal e/ou sistemas de combate à evasão fiscal, pois só muito raramente são punidos e, quando isso acontece, o suborno acaba por ser a via mais utilizada para contornar problemas com a justiça. Acresce que a subliminar evasão “directa” ao fisco, que tributa receitas e rendimentos, não é mais do que um reflexo da confusão que reina no sistema “indirecto” de impostos sobre o consumo e a produção.

Os impostos indirectos representam 60% do total da matéria colectável pelo governo indiano. Os impostos indirectos base foram fixados em 16% do valor da produção de uma empresa, a que acresce toda uma gama de benefícios, isenções e taxas. Por exemplo, existe um “imposto indirecto especial” (SED) sobre produtos que contenham poliéster, sobre automóveis, aparelhos de ar condicionado e pneus, por oposição ao “imposto indirecto acrescido” (AED, a não confundir com SED), aplicável a “bens de especial importância.

As isenções aos impostos indirectos são numerosas e complexas, e englobam empresas com receitas inferiores a 10 milhões de rupias/ano, bem como operações sedeadas em regiões particularmente sensíveis. No total, as isenções abrangem cerca de 70 categorias, subdivididas em 259 entradas, 53 condições e 7 listas, todas contendo numerosos itens. Resumindo, as isenções convidam ao abuso de confiança. Ou seja, face ao poder que os técnicos da administração pública têm para interpretar e aplicar as disposições, estes são muitas vezes persuadidos – por um dado preço – a emitir um parecer favorável. Assim, os bens a que é aplicada a tributação mais elevada, como o granito polido, são, afinal, vendidos a uma taxa mais baixa, como a que é aplicada ao granito em bruto.

A evasão aos impostos especiais acaba, contudo, por ser mais recorrente do que a evasão aos impostos sobre o rendimento singular e colectivo. Se uma empresa decidir fugir aos impostos especiais e se a sua taxa for elevada, comparativamente aos lucros antes de impostos no respectivo sector, a concorrência terá, igualmente, de fazer “batota” para sobreviver. O governo, à medida que aumenta a evasão fiscal, reage criando impostos “acrescidos” ou “especiais”, numa espécie de incentivo a novas fugas ao fisco.

Neste contexto, a colecta de impostos directos é também afectada. O suborno pago ao cobrador de impostos indirectos para obter um parecer favorável, a diferença entre o valor real do granito polido e do granito em bruto, bem como a sonegação de informação fiscal leva ao surgimento de fundos “obscuros”, que não podem constar na declaração de impostos. Em suma, a evasão aos impostos indirectos, além de enfraquecer o sistema público, também desencoraja as empresas a adoptar novas tecnologias que impliquem operações em larga escala. Sublinhe-se, porém, que a fuga aos impostos indirectos é mais fácil quando se opera um núcleo de pequenas unidades do que no caso de uma empresa de grande dimensão, pois inviabiliza as economias de escala. Por esta razão, é fundamental que a indústria de software – onde todas as operações estão isentas de impostos – funcione plena e eficazmente.

Perante isto, poderá a Índia superar o exemplo chinês, onde a racionalização de impostos indirectos estabelecida em 1994 abriu caminho a um ‘boom’ extraordinário? Ou será que os governos de coligação numa democracia vigorosa não são capazes de levar avante tais reformas?
No ano passado, o partido nacionalista hindu – o BJP –, então no poder, aprovou legislação no sentido de introduzir reduções drásticas no défice orçamental. Posteriormente, nomeou uma ‘task force’ para elaborar as alterações necessárias à política fiscal e à despesa pública. Em Julho, a ‘task force’ propôs, entre outras medidas, aumentar a carga fiscal – em vez de reduzir a despesa –, eliminando a maioria das isenções aos impostos indirectos. O novo governo indiano já aprovou as mesmas e, se o Congresso e os partidos da oposição concordarem, está previsto dar seguimento a estas políticas de sustentabilidade económica e crescimento. No fundo, esta atitude revela que todas as democracias têm os meios e os mecanismos necessários para encorajar o desenvolvimento.




publicado por psylva às 12:31
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