Quarta-feira, 1 de Dezembro de 2004
O funcionalismo público: as duas visões
Estranhamente, é este o funcionário que tem mais inimigos e a quem fazem por tornar a vida mais difícil.
Se há instituição, área, ou sector que, ao que se ouve e lê, parece congregar uma avaliação largamente consensual na sociedade portuguesa - para além da opinião sobre as qualidades do Sr. Trapatonni - esse é o do «funcionalismo público»: São em número excessivo, trabalham pouco e mal, e ganham demasiado! Tudo poderia ser sintetizado na seguinte frase: «Salários da função pública torram 80% dos impostos» (Jornal Expresso). O que corresponde à ideia de que o «funcionário público» é , no dizer de H. de Balzac, num satírico e arrasador livrinho intitulado «Dos funcionários e suas funções» (obrigado, F. Pacheco, pela oferta!), «um homem que vive do seu ordenado e que nada mais sabe fazer do que remexer e escrevinhar em papéis».
A história está, obviamente, mal contada: A Administração Pública, também fiscal, enquanto instituição complexa de regras, meios técnicos e corpo de funcionários, encontra justificação para a sua existência enquanto organização que tem a seu cargo implementar e assegurar um conjunto de programas e acções decididas pela instância política, o que, nomeadamente, se traduz na provisão de bens e serviços de relevante valor social e económico, total ou parcialmente «não disponibilizados» pelo mercado na quantidade e preço socialmente desejáveis. Disso são exemplo, actividades tradicionais como a defesa nacional, a segurança e ordem pública, a administração da justiça, a iluminação pública (o que a teoria designa por bens públicos puros), ou intervenções mais recentes na área do fornecimento de cuidados de saúde, serviços de educação, prestações e coberturas de carácter social e de apoio ao rendimento (que sofreram grande desenvolvimento na 2ª metade do século passado - «Estado-Providência»).
Como a própria enumeração evidencia trata-se, sobretudo, de bens e serviços de carácter «trabalho intensivo», não parecendo ser, nessa medida, surpreendente o peso e a importância que neles assume o custo da mão-de-obra (salários), seu principal «input».
Não se escamoteia, naturalmente, que como em qualquer outro sector da actividade económica, a provisão pública deve responder a critérios quer de qualidade, quer de eficiência administrativa. Na análise do desempenho das administrações públicas, afirma-se frequentemente que os respectivos dirigentes e burocratas - termo técnico que degenerou na linguagem comum em sinónimo de ineficiência e «red tape» - estariam mais preocupados com a manutenção dos seus «privilégios» (salários e «fringe benefits», áreas de poder relativo, dimensão dos departamentos e dos fundos geridos, etc.) e em «inventar trabalho para o seu colega» (lei de Parkinson), do que em serem os disponibilizadores da informação relevante de apoio à decisão política, e os veículos do «saber fazer» eficiente na organização. Neste campo, a análise económica da burocracia (Niskanen, 1971) evidencia que a burocracia pública não é distinta, no essencial, das restantes, embora as características específicas do «ambiente institucional» em que actua (nomeadamente, as dificuldades na definição de um «output» quantificável, na avaliação de desempenhos e na consequente aplicação de um conjunto de incentivos materiais eficazes) potencie as estratégias e as «ineficiências» referidas.
Insurgem-se alguns com insistência sobre a dimensão e recursos afectos a tal organização. Invoca-se em favor dos respectivos argumentos críticos, dados comparativos internacionais, clama-se «por vingança», pedindo «best value for money», isto é, por melhores contrapartidas dos seus impostos. Não seremos nós que defenderemos que estão errados: na realidade, e segundo estatísticas oficiais, Portugal não apresenta um «curriculum» invejável neste campo, embora os «profetas da desgraça» esqueçam, com frequência, nas suas comparações factores como níveis de desenvolvimento económico e social relativo, diferentes estruturas etárias das suas populações, consequentes distintos níveis e composição de intervenção pública, graus de «imaginação contabilístico-orçamental» e de «outsourcing» dos respectivos sectores públicos (empresarialização de serviços, vide, hospitais), etc.
Porém, e no fim, de entre as várias «categorias de amanuenses» identificadas por Balzac, gostaríamos de reter do funcionário publico a seguinte descrição: « Leva a carreira a sério, estuda as questões, os homens, as coisas, conhece todos os meandros da Administração e ama o seu país. Tem uma especialidade e escreve memorandos. É por vezes sombrio e inquieto, como se não tivesse a certeza de que irá ser pago, mas acaba sempre por ser apreciado. Dele, diz-se que é um burro de carga: leva trabalho para casa, esquadrinha e espiolha todos os recantos do ministério; para ele, a Função Pública é a Vida. Tem força de vontade e emprega-a no funcionalismo: nada o demove, nada o desencoraja. Estranhamente, é este o funcionário que tem mais inimigos e a quem fazem por tornar a vida mais difícil».
E, se entre as duas visões antagónicas apresentadas, no meio estará a virtude, então, «não se atire no pianista, ele está apenas a seguir a partitura» (autor anónimo).