Sábado, 20 de Novembro de 2004
O velho e o burro
Muitos têm dito, com razão, que o Orçamento para 2005 reduz o ímpeto de consolidação fiscal e abranda o esforço de controlo da gigantesca despesa pública. Realmente, logo que se sentiu o alívio da recessão e se reduziram um pouco os perigos de derrapagem do défice, deslizaram a urgência e ardor da austeridade. Assim, é razoável duvidar da possibilidade de as finanças públicas portuguesas virem a entrar numa trajectória sustentável e equilibrada.
Este é o velho problema da democracia lusitana. Pelo menos desde há 200 anos que o nosso país não consegue, em liberdade, livrar-se da chaga do descontrolo orçamental. Debaixo de ditadura (de João Franco, Salazar ou Caetano) as coisas resolvem-se. Mas a libertação traz sempre consigo o descalabro fiscal, como se viu no Liberalismo, na Primeira República e (de forma menos grave mas igualmente preocupante) desde o 25 de Abril.
A causa profunda desta situação não está apenas nos ministros e nos Governos.
Ela vem também de uma atitude irresponsável, imatura e juvenil de muita da nossa elite, dos que analisam e discutem a política económica.
Vemos isso claramente quando notamos que os que agora acusam o dr. Bagão Félix de não ser suficientemente duro nas despesas são, em grande medida, os mesmos que antes condenavam a dr.ª Manuela Ferreita Leite por estar «obcecada pelo défice» e por destruir a nossa economia com rigorismos orçamentais. Muitos dos que hoje bramam, justamente, contra os efeitos de uma subida de salários dos funcionários públicos são exactamente os mesmos que estariam a uivar se esses salários não fossem subidos.
Isso ficou patente nos últimos dias.
Os periódicos, sobretudo económicos, touxeram em grande destaque a notícia de que a Standard & Poor's passou a perspectiva do rating (classificação da confiança como devedor) da República Portuguesa de «estável» para «negativa». Isso, sem quaisquer efeitos imediatos, pode indiciar uma futura descida dessa classificação, o que motivaria um aumento das taxas de juro que a nossa dívida pública tem de pagar.
O que ninguém reparou é que na própria notícia se dizia que o rating do Estado português melhorou acentuadamente nos últimos anos. Mas nunca os jornais fizeram primeira página com esse facto. Nessa altura essas boas notícias do sucesso das Finanças passavam despercebidas.
A verdade é que os jornais e comentadores interessam-se muito pouco com as questões económicas, usando-as apenas como pretexto para o jogo político. Por isso, como rapazolas no recreio, saltam do expansionismo para o rigorismo conforme dá jeito à tropelia partidária do momento, esquecendo as graves questões estruturais.
Mas nesta história há também um burro. E ele é... o contribuinte. Porque os cidadãos portugueses ainda não perceberam que todo o dinheiro que o Estado gasta é seu. Por isso, quando lêem nos jornais protestos de agricultores, professores, médicos, funcionários, autarcas e tantos outros, quando os ouvem a repudiar os cortes orçamentais e exigir mais despesa, os contribuintes deviam comprender que o que esses grupos de pressão querem é tirar ao povo, através do Orçamento, o dinheirinho que tanto lhe custou a ganhar. Os ministros gastam, não o seu dinheiro, mas o nosso. Falta-nos consciência de contribuinte. Enquanto o burro não entender que carrega às costas o velho problema e os rapazolas dos jornais, as coisas não se resolvem.