Quinta-feira, 25 de Maio de 2006
A ditadura dos explicadores
Rui Ramos
Uma democracia não se distingue de uma ditadura simplesmente porque os governantes vão, paternalisticamente, explicando às massas ignaras o que a sua insondável sabedoria lhes mandou fazer. A democracia passa pela intervenção do eleitorado no contexto de um debate plural e livre entre políticos com diferentes opções.
Não estamos apenas em época de reformas. Estamos também em época de explicações. A cada "reforma", os ministros explicam tudo, e há sempre comentadores que gostam de explicar o resto. Há quem, no entanto, nunca esteja saciado. São aqueles que acreditam que os portugueses vivem "iludidos". Para eles, o Governo deveria devolver os portugueses à realidade. Como? Explicando ainda mais coisas, enciclopedicamente: a globalização, a economia de mercado, etc. Que nos diz este gosto das explicações sobre a verdadeira natureza do regime em que vivemos?
Tudo isto vem de longe. Nos séculos XIX e XX, quem em Portugal quis instituir uma democracia nunca pensou em o fazer para os portugueses tal como eles eram, mas só para os portugueses como um dia viriam a ser, depois de devidamente transformados pelo Estado. Daí o hábito de entender a política democrática como pedagogia de massas. Daí, também, o princípio de que deveria caber ao governo a última palavra na vida da maioria da população.
Reduzidos a uma massa de "utentes" e "beneficiários", os portugueses foram convidados a abdicar de muitas responsabilidades individuais a favor de um Estado supostamente capaz de resolver todos os problemas. Assim se instituíram direitos, assim se criaram expectativas - tudo aquilo que agora, subitamente, se passou a chamar "ilusões", no momento em que os actuais governantes se convenceram de que a sustentação do sistema aos níveis actuais poderia comprometer a criação da riqueza que querem redistribuir. Como sempre, a classe política não acreditou numa mudança assente na responsabilização dos cidadãos. Preferiu invocar cenários apocalípticos para justificar os cortes necessários à viabilização do estatismo.
As boas almas gostam de afligir-se com o facto de a população não confiar nos políticos. Ninguém, no entanto, repara que essa desconfiança resulta, em larga medida, do facto de os políticos não confiarem na população. Desde 2002, já vamos no segundo governo que é eleito com um determinado programa, apenas para assumir outro muito diferente depois de tomar posse. Em vez de ajudarem os cidadãos a fazer escolhas informadas, os políticos portugueses têm preferido explicar-lhes, depois das eleições, a razão de opções que nunca puseram em cima da mesa durante a campanha eleitoral.
No último fim-de -semana, Alberto Martins esclareceu que o PS, no Governo, estava a cumprir um programa sufragado pelos portugueses. Alberto Martins defende obviamente uma visão muito peculiar da história recente. Na última eleição legislativa, em Fevereiro de 2005, o governo foi disputado por dois partidos, um dos quais dizia que os "sacrifícios" tinham acabado, e o outro que nunca tinham sido necessários. Os actuais governantes, quando se tratou de serem votados pelos portugueses, não falaram no encerramento de escolas e maternidades, nem sequer de uma reforma da Segurança Social durante esta legislatura. Temos tido explicações para as "medidas". Falta-nos, porém, a explicação para o facto de não terem sido previstas no período pré-eleitoral.
Os admiradores dos actuais ministros dizem-nos, off the record, que foi preciso ser assim: se tivessem dito a verdade, não teriam sido eleitos. Deveremos então concluir que a democracia, em Portugal, é incompatível com a verdade, e precisa da ilusão?
Em Espanha, em Setembro de 1989, quando quis adoptar políticas de contenção do consumo e consolidação orçamental, o então chefe de governo, Felipe González, convocou eleições antecipadas. Os espanhóis tiveram a oportunidade de lhe dar - ou não -um mandato com base nessa nova orientação governativa. González explicou então que "não se pode consumir o que não se produz". Mas deu essa explicação antes das eleições, e não depois. Os espanhóis decidiram a seu favor. Certamente que isso dispensou González, nos anos seguintes, de inundar o país com as explicações em que os nossos ministros são agora pródigos. Uma democracia não se distingue de uma ditadura simplesmente porque os governantes vão, paternalisticamente, explicando às massas ignaras o que a sua insondável sabedoria lhes mandou fazer.
Já até houve, neste país, um ditador que conversava "em família" com os portugueses. A democracia passa pela intervenção do eleitorado no contexto de um debate plural e livre entre políticos com diferentes opções. Portugal viveu, durante uma grande parte do século XX, sob um regime que se sentia lisonjeado quando descrito como uma "ditadura de professores".
Teremos simplesmente passado, com a democracia, para uma "ditadura de explicadores"? Historiador