Quarta-feira, 11 de Outubro de 2006
O que todos sabem e alguns fingem ignorar

Há meses que o Partido Comunista vem enchendo o País com a frase: "Público é de todos; privado é de alguns." Trata-se, sem dúvida, de um slogan elegante, apelativo e contundente. Mas que quererá significar? Considerada em si, a afirmação é claramente falsa. Será que só alguns têm acesso a comida, vestuário e habitação, cujo fornecimento é privado? E será que o Teatro Nacional de São Carlos, o Instituto Diplomático e o ensino superior público são para todos?

É possível que a frase se refira antes ao facto de, sendo os serviços do Estado mais baratos que as empresas do sector, tal permitir o acesso a todos, e não só a alguns. Mas serão mesmo mais baratos? Toda a gente sabe que a verdadeira diferença entre os organismos públicos e privados é que estes se pagam no acto da compra, enquanto os primeiros são financiadas por impostos. Assim, esses serviços são de todos, não por serem mais baratos, mas porque todos, queiram ou não, são obrigados a pagá-los.

Só que toda a gente sabe que entre nós tal não significa que sejam mesmo de todos, porque nem todos pagam impostos. Devido à forte evasão fiscal, a carga tributária descai para cima dos trabalhadores por conta de outrem. Assim, o que se deve dizer é que os serviços privados são pagos pelos clientes, enquanto os públicos são pagos pelos pobres. Em ambos os casos só alguns estão envolvidos.

Talvez a frase tenha a ver, não com esta abordagem economicista, mas antes com o propósito último das instituições. Afinal, as empresas privadas têm fins lucrativos, mas os serviços do Estado existem para servir o cidadão. Então, o que se quereria pôr em destaque seria o contraste entre a visão egoísta do mercado e solidária das repartições públicas.

Mais uma vez, porém, uma inspecção cuidadosa lança dúvidas nessa interpretação. Uma empresa, qualquer empresa, só tem sucesso e influência enquanto satisfizer os seus clientes.

Fala-se muito sobre o poder económico, sobretudo das grandes firmas, mas toda a sua autoridade vem apenas de conseguir vender. No dia em que a empresa perca essa popularidade junto dos fregueses, nesse dia deixa de existir, por muito poderosa que fosse.

Até Coca-Cola, Microsoft, Shell e outros gigantes jogam todos os dias a sua sobrevivência no mercado. Já vimos grandes potentados ruir em semanas por causa da obsolescência dos produtos ou erros de gestão.

Nenhuma empresa, por muito poderosa que julgue ser, consegue hoje existir vendendo telexes, réguas de cálculo ou iluminação a gás, que já foram bem populares. Os ministros são eleitos de quatro em quatro anos e os funcionários públicos têm empregos para a vida, mas as empresas estão diariamente sujeitas à catástrofe.

Isso tem um efeito dramático sobre a tal frase. É que as empresas privadas funcionam para servir os clientes, não por altruísmo ou simpatia, mas por regra elementar de mercado. Pelo contrário, os serviços públicos não apostam aí a sua acção. Um organismo do Estado tem êxito se mantiver alegre, não o cidadão e utente, mas o chefe de repartição, o director--geral e o ministro. A medida do seu sucesso não está na satisfação do público mas, quando muito, em regras de procedimento e índices de produtividade.

Aliás, mesmo no que toca ao egoísmo dos fins lucrativos, serão os serviços públicos assim tão desinteressados? Vendo os telejornais, temos de dizer que a principal diferença é que, enquanto a cobiça das empresas é disfarçada, a dos funcionários vem apregoada nas manifestações por mais salários e reivindicações públicas de regalias. O desprendimento anda muito omisso.

Para testar este ponto, basta fazer algumas perguntas elementares. Se o leitor fosse escriturário, professor ou motorista, onde é que preferiria trabalhar, no sector privado ou no público? Se, por outro lado, for aluno, passageiro ou doente, onde preferia ser atendido, no privado ou no público? Isto, aliás, recoloca a questão inicial. Qual é mais barato, o serviço privado, que presta contas ao fim do mês, ou o do Estado, dominado pela corporação particular? O que se assistiu em Portugal foi precisamente ao empolamento dos custos públicos, paralelo à crescente irritação dos utilizadores.

Será então que a frase não tem sentido? Não, ela diz algo muito importante.

Significa que o PCP deixou de ser um partido de utentes, que sabem bem que o público não é de todos, para passar a ser dominado pelos interesses das corporações que vivem de manter essa ilusão.



publicado por psylva às 08:31
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