Quarta-feira, 29 de Novembro de 2006
Abaixo do Estado mínimo
Algo está terrivelmente errado no Estado em Portugal. Este dá sinais de não conseguir cumprir as suas funções prioritárias e mínimas.
João Cardoso Rosas
Imaginemos que o Estado não desempenha nenhuma função ao nível da promoção da cultura, da arte e do património. Imaginemos ainda que o Estado não tem nenhuma das funções ditas ”sociais”, como as ligadas à educação e formação profissional, à prestação de cuidados de saúde e à cobertura de riscos sociais. Imaginemos também que o Estado não tem as funções ligadas à redistribuição dos rendimentos e da riqueza. Por fim, imaginemos que o Estado não se preocupa em garantir bens públicos como as acessibilidades ou a iluminação nocturna e que ele também não desempenha qualquer função relativa à regulação dos mercados, à preservação dos recursos naturais para as gerações futuras e ao ordenamento do território. Depois de descontadas todas estas funções e de reduzido o Estado ao ”osso”, por assim dizer, o que ficaria? Suponho que restaria ainda ao Estado aquilo que é e será sempre a sua tarefa prioritária: garantir a segurança das pessoas e a protecção das suas liberdades e das suas posses.
Parece-me evidente que existe um acordo generalizado em relação a este mínimo denominador comum face às diferentes visões sobre o que o Estado deve fazer ou deixar de fazer. À direita, os mais libertários dirão que cabe ao Estado reduzir as suas funções a esse mínimo da protecção das pessoas e da sua propriedade (a começar pela propriedade de si mesmo). À esquerda, dir-se-á que o Estado deve certamente começar por aí, mas que deve também fazer outras coisas e que é mesmo algo contraditório cobrar impostos para essas funções mínimas e não os cobrar para outras funções igualmente importantes. Mas o consenso sobre a tarefa prioritária do Estado permanece válido.
É claro que os estatistas de todas as denominações, de esquerda e de direita, não estão muito interessados nesse consenso. Eles não querem distinguir o que tem prioridade e o que não tem; para eles, o Estado é ”pau para toda a colher” e o pote não tem fundo. O Estado tanto desempenha funções fundamentais como permite fazer as transferências mais controversas: pôr os pobres a pagar os espectáculos dos ricos no S. Carlos; pôr os do litoral a pagar as SCUT do interior e do Algarve; pôr os da província a pagar os transportes colectivos do Porto e de Lisboa (como mostrou Vital Moreira no ”Público”); pôr os do continente a pagar tudo o que se queira nas regiões autónomas; pôr a totalidade dos portugueses a subsidiar as viagens dos que podem andar nos aviões da TAP, e muitas outras coisas do género.
Não sei se é pelo facto de o Estado fazer tantas coisas dificilmente justificáveis que há tão pouca gente a reparar no facto de ele estar a deixar de fazer as coisas prioritárias. Se há áreas que funcionam mal no Estado português são precisamente aquelas que deveriam assegurar a segurança das pessoas, as suas liberdades e posses: os tribunais e as polícias.
Um exemplo: esta semana o ”DN” noticiava a crescente tendência para a privatização da administração da justiça mediante o crescimento exponencial dos tribunais arbitrais ‘ad hoc’. É certo que a prática da criação destes tribunais é usual e internacionalmente regulamentada. Mas o que se nota agora em Portugal é o justificado desespero das empresas – e do próprio Estado, quando é parte num contencioso – com a morosidade e incompetência dos tribunais do Estado. Por isso as partes em conflito preferem muitas vezes criar tribunais privados e pagos por elas para dirimir conflitos que, de outra forma, se arrastariam eternamente.
Outro exemplo: no Verão passado, empresas do Porto queriam contratar segurança e vídeo-vigilância privadas das ruas da Ribeira, com a concordância da Câmara Municipal. Ou seja, os polícias do Estado não conseguem patrulhar o espaço público e a tarefa poderá ser privatizada. Não sei em que pé está este processo, mas são evidentes por todo o país as dificuldades das polícias e o consequente crescimento do negócio da protecção, da contratação de vigilantes, da instalação de alarmes (paradoxo: se é cada vez mais difícil ver polícias na rua, é cada vez mais fácil encontrá-los em supermercados ou recintos desportivos, onde os polícias fazem, com a sua farda normal, trabalho gratificado de seguranças privados).
Estes exemplos sugerem que algo está terrivelmente errado no Estado em Portugal. Este dá sinais de não conseguir cumprir as suas funções prioritárias e mínimas, abaixo das quais a sociedade organizada degenera em sociedade anómica. Por isso é necessário dizer que nós, cidadãos participantes no contrato social que legitima o Estado português, não queremos uma sociedade abaixo do Estado mínimo, na qual empresas e indivíduos têm de recorrer sistematicamente à justiça e à protecção privadas. A procura de reparações por parte dos que se sentem lesados nos seus direitos, assim como a protecção contra os criminosos, é algo que o Estado nos deve. É para isso que o Estado serve.