Quarta-feira, 29 de Novembro de 2006
Com uma guerra de atraso
Dos generais, especialmente dos franceses, costumava-se dizer no século XX que andavam sempre com uma guerra de atraso. Em 1914, preparados para uma guerra de movimento, como a de 1870, acabaram atolados nas trincheiras. Em 1939, muito bem treinados para uma guerra de trincheiras, foram apanhados desprevenidos por uma guerra de movimento. O mesmo risco correm agora os comentadores de política internacional. Há um par de semanas, o PÚBLICO trazia-nos uma entrevista com um desses especialistas, o venerável John Keane, ainda muito angustiado com a necessidade de limitar o poder dos EUA. Era impossível não sorrir. Limitar o poder dos EUA, no momento em que, de Bagdad a Manágua, nunca pareceu tão limitado? Na Coreia do Norte e no Irão, os EUA já deixaram os lugares da frente para outros. Na América Latina, o petróleo de Chavez revela-se mais eficaz para lubrificar eleições. Nos próprios EUA, o Governo contempla a perspectiva de passar os próximos dois anos a ser rasteirado pela nova maioria do Partido Democrata. Desde 2001 que muita gente se habituou a fazer vida intelectual à custa da "hegemonia" americana, da "estupidez" de Bush e do "radicalismo" dos neoconservadores. Convinha-lhes reciclarem-se. Essa guerra está a passar.
A rápida saída de Rumsfeld sugere que a vitória da oposição nos EUA foi mais um pretexto do que uma causa para a presumível viragem de política externa. Simplesmente, a classe política americana deixou de acreditar na corrente operação no Iraque. Os sinais são claros. Em 2004, na véspera das eleições presidenciais, a discussão era sobre o "multilateralismo" no sentido de uma maior coordenação com os amigos, nomeadamente os europeus; agora, discute-se aparentemente outra coisa: um compromisso com os inimigos, especialmente a Síria e o Irão. Foi o que Tony Blair indicou anteontem, e presume-se que seja a recomendação do Iraq Study Group presidido por James Baker.
Tudo isto era previsível para quem tivesse seguido a movimentação nas revistas americanas sobre política externa. Desde a Primavera de 2004, pelo menos, que toda a gente fugia do "idealismo" para o "realismo". Em 2006, essa migração intelectual produziu as mais ferozes denúncias dos neoconservadores por ex-correligionários seus, como Francis Fukuyama (em After de Neocons. America at the Crossroads) ou John Hulsman (em Ethical Realism: A Vision for America"s Role in the World, escrito com Anatol Lieven). Para Fukuyama ou Hulsman, os seus antigos companheiros não eram bem conservadores. Estavam infectados pelo "idealismo progressista". Aliás, preponderava entre eles gente oriunda da esquerda. Daí que tivessem concebido a superioridade militar americana como uma alavanca para a democratização do mundo. Nunca teriam percebido os limites do poder americano, nem a inadequação da democracia para resolver certos conflitos. Obviamente, nenhum dos desertores ainda se quer parecer com Kissinger. Fukuyama inventou um "wilsonianismo realista", e Hulsman um "realismo ético" para camuflarem a sua nova posição.
Entretanto, como explicou Victor Davis Hanson na National Review, algo se perdeu. Nomeadamente, a percepção de que o neoconservadorismo correspondeu, em parte, ao fracasso do velho realismo, dos seus compromissos e equilíbrios de poder, para garantir a segurança da América. Tinha sido essa a lição do 11 de Setembro. A lição que se quer tirar da guerra do Iraque é agora outra. Mas o fim de uma ilusão não significa necessariamente um aumento de lucidez, caso leve apenas ao regresso de outra ilusão. O erro é pensar que, já que não é possível fabricar democracias, é possível multiplicar as Líbias, isto é, levar os antigos párias a aceitar uma tranquilidade contrita. Alguns dos recém-chegados ao "realismo" propõem-se agora acreditar que o Irão apenas deseja a paz, e não a liderança do mundo islâmico; ou que os partidos armados da Palestina ambicionam simplesmente um pequeno Estado árabe, e não a destruição de Israel. Como se chama ao "realismo", quando depende das mais líricas hipóteses?
Os realistas não antevêem o futuro sob a forma de um concerto de democracias, como almejavam os neoconservadores. Hulsman, por exemplo, confia no entendimento dos EUA com os ex-comunistas da Rússia e os ainda-comunistas da China, à volta da defesa dos circuitos de bens e capitais da globalização. O resultado seria o que ele chama a "grande paz capitalista". Um cartaz americano da II Guerra Mundial proclamava que "este mundo não pode existir metade escravo e metade livre". Aparentemente, vai ter mesmo de existir assim.