Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006
Utilizador – pagador


“Há que evitar que o princípio do utilizador-pagador se torne numa ‘verdade inquestionável’ aplicada a todas as situações.”

Nos últimos tempos têm sido contestadas, ou propostas, medidas que alegadamente se apoiam na ideia do utilizador–pagador. Caiem neste campo as taxas de utilização, ou moderadoras, no internamento anunciadas pelo Ministério da Saúde e as portagens a serem introduzidas nas SCUT, mas por vezes se refere também as propinas do ensino superior.
Sendo um princípio que começa a ser invocado com frequência, não de espantar que por vezes se faça uma deficiente utilização do conceito. Vejamos em que consiste realmente e porque é importante. No funcionamento de uma economia de mercado, entendida como uma organização das relações económicas em que não há planificação central, os “sinais” para consumo, para produção, para investimento, são transmitidos através dos preços. Confia-se em que a soma das decisões individuais, tomadas em liberdade, levem a resultados que sejam satisfatórios do ponto de vista social. Quando tal não sucede, poderá justificar-se a intervenção do Estado (e “poderá” porque não é certo que o Estado tenha a capacidade e por vezes mesmo o interesse em corrigir essas situações).
As decisões individuais estão, regra geral, associadas a escolhas que balançam custos e benefícios das opções disponíveis. Quando se fala em utilizador-pagador essencialmente está-se a afirmar que as decisões individuais estão mais próximas do interesse colectivo sempre que o decisor que recolhe os benefícios também suporta os custos associados com a decisão.
Em determinadas circunstâncias, a sociedade poderá considerar que os valores sociais não se encontram reflectidos na avaliação privada de custos e benefícios e abre espaço a uma intervenção correctiva. Noutros casos, a própria natureza da relação económica leva a que o princípio não seja aplicável.
As SCUT caiem no primeiro caso. As taxas de “utilização” no segundo. Vejamos porquê. No caso das auto-estradas, a sua utilização beneficia sobretudo o próprio condutor (maior rapidez de deslocação), pelo que à partida reúne as condições para que a decisão privada deva contemplar todos os custos e benefícios. A aplicação do principio do utilizador pagador surge como natural. Como a excepção resulta de valores sociais, caso a “sociedade” considere que na ausência de alternativas razoáveis (e a definição do “razoável” é um problema complicado...) se deve por, uma questão de solidariedade, partilhar os custos de infra-estruturas rodoviárias, então a existência de um benefício “social” que não é contemplado na decisão privada de usar a estrada será argumento para um redução do preço de portagem (podendo ou não colocá-lo a zero). Ou seja, se a sociedade considerar que todas as capitais de distrito não devem estar a mais do que um certo número de minutos de distancia umas das outras por motivos de coesão nacional, então fará sentido introduzir uma redução do custo para os utilizadores. Ainda assim, se focarmos a atenção nas pessoas, valorizando os custos e benefícios de deslocação associados com a interioridade, possivelmente seriamos levados não a portagens zero (os tais “sem custos para o utilizador”) e sim a descontos nos preços para os moradores registados das zonas afectadas, por exemplo (e com a Via Verde a implementação tecnológica de uma opção desse tipo não teria provavelmente custo proibitivo). Tal tornaria explícito o valor dado aos custos de interioridade, e o principio do utilizador pagador seria devidamente aplicado.
O segundo exemplo, das “taxas de utilização”, é diferente na sua substância. Embora de um ponto de vista de eficiência no momento de recurso a cuidados médicos continue a fazer sentido que quem beneficia tenha em conta os custos de gerar esse benefício, há uma diferença fundamental. Em geral, desconhece-se quando e em que medida se vai necessitar de cuidados médicos. Há uma incerteza sobre o momento e sobre o montante associado com essas necessidades. Como em outras situações de incerteza, procuram-se mecanismos de cobertura dessa incerteza. No caso de Portugal e das despesas em saúde, o Serviço Nacional de Saúde funciona como um gigantesco seguro, em que por conta de pagamentos antecipados (os impostos pagos, que funcionam como “prémio de seguro”) se transfere para outra entidade a responsabilidade de pagar as despesas médicas no momento em que ocorram. Logo, a aplicação do princípio do utilizador-pagador é aqui errada. Seguida estritamente significaria a imposição do custo da incerteza sobre a população, quando todos ficam melhor com a eliminação, pelo menos parcialmente, dessa incerteza. É verdade que o Ministério da Saúde não falou na aplicação do princípio do utilizador-pagador, nem sequer deu a entender que o tivesse em mente. Mas tal não impediu que se pudesse fazer o paralelo. Importa por isso que fique claro que a aplicação desse conceito não pode ser feita de forma cega.
Há, assim, que evitar que o princípio do utilizador-pagador se torne numa “verdade inquestionável” aplicada a todas as situações. É certo que na grande maioria das decisões este é um princípio que deve ser seguido. Mas há que ter a lucidez de perceber em que circunstâncias se devem ter excepções, nomeadamente quando estamos na presença de mecanismos de seguro que procuram resolver exposição a incerteza. Nesses casos, há que encontrar um equilíbrio entre diferentes objectivos, como obter decisões eficientes nesse momento (a favor do princípio do utilizador pagador) e manter protecção contra o risco (contra o princípio do utilizador pagador depois do acontecimento adverso se ter realizado). Esperemos que de um lado e doutro da barricada do combate político não se “abata” a correcta aplicação de princípios económicos.





publicado por psylva às 09:05
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