Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006
O funcionalismo, eis o inimigo!
Antigamente, invocava-se o "clericalismo": era esse o inimigo a que, há cem anos, os governos de esquerda recorriam sempre que não podiam, de outro modo, alegrar o seu "povo" com mais conquistas democráticas. Os governos do Partido Republicano Português, entre 1910 e 1926, viveram durante anos à custa desse papão. O actual governo da "esquerda moderna" tem outro inimigo: já não é o padre ultramontano, mas o funcionário, sob as suas múltiplas formas, no activo ou na reforma. Bem sei que convém a todos os protagonistas fazerem de conta que não é bem assim. Os ministros não admitem abertamente a cruzada contra os funcionários: limitam-se a deixar a imprensa "distorcer" o que dizem. Os funcionários, pelo seu lado, gostam de atribuir a severidade com que são tratados a uma perversão desnecessária do ministro que os tutela. A semana passada, durante as marchas populares dos professores na avenida, ouviu-se o velho rifão de que as "reformas" têm de ser feitas com, e não contra os funcionários. Eis uma tese em que, por respeito à inteligência dos funcionários, não podemos aceitar que eles acreditem verdadeiramente. Porque se há uma coisa certa e óbvia, é que as reformas deste governo têm de ser feitas contra os funcionários, e nunca com eles.
Para explicar a sanha contra os funcionários, há boas almas que atribuem ao actual Governo do PS um suposto projecto de "direita liberal" para minimizar o Estado. É talvez a mais comovente de todas as ilusões. As vítimas administrativas e docentes do actual Governo convencem-se assim de que os seus problemas seriam simplesmente resolvidos mudando estes ministros, ideologicamente contaminados, por outros ministros, ideologicamente mais puros. Mas este, como o chefe do Governo não se cansa de repetir, é bem um governo de esquerda. Mais: é o único governo de esquerda possível numa época de relativa estagnação económica, e quando já ninguém acredita nas vantagens de estatizar a produção da riqueza. O seu objectivo é preservar o actual Estado social, isto é, o sistema pelo qual o poder político se reserva o direito de determinar em última instância as "escolhas" dos indivíduos. E para isso, a "esquerda moderna" só encontrou um caminho. E esse caminho, quando retiramos aos discursos e planos governamentais a sua casca lírica, é basicamente este: exigir mais aos seus funcionários e pagar-lhes menos. É precisamente porque o Governo não quer nem pode contemplar uma verdadeira mudança de vida em Portugal, que precisa de levar o funcionalismo ao purgatório. A outra alternativa de esquerda seria destruir a sociedade com impostos. A "esquerda moderna" é, apesar de tudo, sensata.
Há ainda outra razão para fazer as reformas contra os funcionários. É que José Sócrates continuou a tradição, inaugurada por Durão Barroso em 2002, do governo-surpresa. Em Fevereiro de 2005, os actuais ministros propunham-se resolver os problemas dos portugueses criando milhares de empregos. Ninguém, em 2005, falou de revisão de carreiras da função pública ou de reformas da Segurança Social. Como legitimar, uma vez no poder, a cambalhota de políticas? De um ponto de vista de esquerda, nada melhor do que representar o novo rumo como uma batalha igualitarista contra os "privilégios" e as "regalias" do funcionalismo. Aqui, o Governo tem sido ajudado pelos seus alvos. Sempre que, no ecrã da televisão, surge um qualquer sindicalista da função pública a queixar-se da ameaça aos seus "direitos", a audiência percebe que são "direitos" que os restantes trabalhadores deste país nunca tiveram, nem podem ter, a começar pelo emprego vitalício. Os funcionários não são "vítimas" credíveis. Para a maioria da população, não são apenas gente com "regalias", mas com poder. Ninguém, nesta sociedade de indivíduos teoricamente apaixonados pela sua própria independência, gosta de depender dos outros. E devido ao Estado social que temos, demasiada gente fica sujeita, demasiadas vezes, aos funcionários. Qualquer ida a uma repartição ou a um centro de saúde aumenta, justa ou injustamente, o folclore nacional sobre a má vontade, o mau humor e a incompetência do funcionalismo. O Governo sabe disto. Basta-lhe, de resto, gerir a divulgação de estatísticas - como os maus resultados dos alunos em testes internacionais, e por aí fora -, para dar uma base científica aos preconceitos e ao ressentimento contra o funcionalismo. É por isso que enquanto os funcionários ocupam as ruas, as sondagens prometem ao PS uma nova maioria absoluta. Se os funcionários não existissem, este Governo teria de os inventar.