Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006
Medina Carreira é um optimista?
Rara é a semana em que não aparecem notícias que demonstram o que para mim é óbvio há muito tempo: vivemos em Portugal na ilusão - que deixou de ser doce - de que o mundo não mudou e que, por isso, podemos continuar "na maior", a viver como sempre, convictos de que recebemos uma promessa de vida eterna para os privilégios e sinecuras que obtivemos em anos em que a ilusão ainda poderia fazer algum sentido.
O relatório de Primavera do Banco de Portugal é mais um balde de água fria nessas ilusões. Continuamos a divergir da União Europeia (e por isso em cada ano ficamos mais longe de nos aproximarmos das médias comunitárias), estamos a ser ultrapassados em PIB per capita pelos países que no Leste aderiram à União Europeia, o Estado continua a contratar pessoal (e além do Estado central, veja-se o caso espantoso da Câmara de Lisboa que vai aumentar os quadros em 1600 pessoas com os votos do PS!), a situação orçamental deteriorou-se apesar da factura dos impostos que continua a aumentar, as nossas exportações perderam quota de mercado em todos os principais países para onde vendemos, o investimento produtivo continua a cair, o défice externo a subir.
Para ajudar à missa, o relatório da OCDE vai no mesmo sentido: temos o pior registo de crescimento dos países industrializados, o segundo mais alto défice orçamental dos países do FMI e o nosso défice corrente é o segundo pior dos países da OCDE.
Perante este quadro negro, como os jornais muito bem escreveram, o Banco de Portugal propõe ideias simpáticas, paliativos ou pias intenções: moderação do consumo, aumento da poupança, aumento da produtividade, controlo das finanças públicas, políticas de mobilidade e de concorrência. E o primeiro-ministro e o ministro das Finanças sacodem a água do capote e dizem que a culpa é do crude e da conjuntura internacional, apesar de a economia internacional estar a crescer a ritmo muito forte.
As sugestões do Banco de Portugal são realmente simpáticas, sensatas, adequadas, prudentes, bem intencionadas e até correctas. E podem mesmo ser compreensíveis as palavras dos governantes. Mas é contraproducente ajudar à nossa desculpabilização e as bonitas palavras são inúteis se não formos capazes de fazer as reformas e as mudanças que outros fizeram e que nós podíamos ter feito em tempos de vacas menos magras. A única e óbvia constatação é a de que não podemos continuar a viver como até aqui, que tudo mudou, porque a concorrência internacional é cada dia mais feroz. Acabaram os tempos dos empregos para a vida, do Estado-providência, do 13.º mês, do subsídio de férias, da reforma aos 55 anos, do absentismo laboral, da baixa por doença sempre que dá jeito, do faz de conta que estou a trabalhar. Também acabou o tempo do ir de carro próprio para o emprego, das pontes permanentes e por dá cá aquela palha, dos juros baixos e do sobreendividamento individual.
Espero que entendam o que estou a escrever, para que não seja mal citado. Sou pessoalmente favorável à maior parte destas aquisições sociais e estilos comportamentais, que melhoraram a qualidade de vida dos portugueses da minha geração. Não creio que vão acabar de um dia para o outro ou que tenham de acabar completamente. O modelo social europeu tem virtualidades que não devem ser esquecidas e o modelo alternativo que aí vem é por mim considerado muito pior e causador de problemas sociais graves a que (também) não estamos habituados.
Mas as coisas são o que são. No tempo das novas tecnologias, dos desarmamentos pautais, da globalização das linguagens, das viagens de avião e dos transportes marítimos rápidos, num tempo em que é possível produzir em Angola, facturar em Cabo Verde, fazer a contabilidade em Moçambique e vender na Europa, o benchmark para os custos de produção no vale do Ave já não são os custos de países europeus mais evoluídos, mas os de países muito menos evoluídos do que Portugal. Por isso é inevitável o violento processo de reestruturação económico-social que estamos a viver e lutar contra isso com paliativos só serve para dificultar mais e por isso tornar mais dura a mudança.
Temos de trabalhar mais e por menos dinheiro, temos de nos reformar mais tarde e com menos vantagens, temos de mudar mais de emprego e muitas vezes para pior, temos de melhorar a nossa qualidade com formação à nossa custa. E é sobretudo no Estado onde terão de acontecer os maiores sacrifícios. É duro ouvir isto e por isso é muito desagradável escrevê-lo, sobretudo para mim que - com sorte, muito esforço e talvez ainda algum mérito - faço parte dos mais favorecidos em Portugal e sempre sofrerei com o que aí vem menos do que outros.
Mas a nossa geração tem de ser capaz de entender que os sacrifícios são indispensáveis e que vão continuar a até aumentar. Para isso, o poder político tem de falar a linguagem da verdade e não tentar amaciar o que custa ouvir. E a oposição - sobretudo à direita - tem de evitar a esquizofrenia de criticar as medidas impopulares do Governo e, ao mesmo tempo, censurá-lo pelo estado em que estamos. Sobretudo porque têm tanta responsabilidade como os outros: depois do regabofe do guterrismo, faltou ao PSD e ao CDS a coragem de enfrentar os privilégios incomportáveis do funcionalismo público, que Sócrates - honra lhe seja - está a tentar reduzir para limites mais admissíveis.
Não temos alternativa: ou então chegaremos em breve à conclusão de que o meu admirado amigo Medina Carreira é afinal um optimista, que o futuro se revelará ainda pior do que ele há anos vem corajosamente afirmando para nos fazer mudar de vida.