Terça-feira, 3 de Abril de 2007
As contratações dos gabinetes do Governo
Prestar contas é uma maçada. Justificar as nossas opções enquanto gestores coloca-nos na incomodidade do escrutínio dos críticos de ocasião, incluindo os demasiado técnicos e os demasiado ignorantes. Mais: é uma burocracia que consome tempo, dinheiro e latim em explicações. Pois é, mas tem de ser. Mesmo no Estado. Sobretudo no Estado.
Todas as empresas têm de ter um técnico oficial de contas que valide a contabilidade. Todas as companhias cotadas têm, ademais, revisores, auditoras e obrigações de transparência impostas pela CMVM. E o Estado tem o Tribunal de Contas, que publicou uma auditoria inédita que mostra desmando e opacidade na forma como os Ministérios contratam e remuneram pessoal.
O Governo apressou-se, através de Jorge Lacão, a pôr em causa o relatório, num tom ameaçador e descredibilizando a equipa de Guilherme d’Oliveira Martins. Pois, disse lacónico, “razões contabilísticas” obrigam a que as transferências correntes passem pelos orçamentos dos gabinetes dos ministérios, embora não sejam despesa desses ministérios.
Antes de nos confundirmos com as “explicações” de Lacão, vale a pena ler o relatório do Tribunal de Contas. Por exemplo, as páginas 17 a 20 e 67 a 70, sobre as transferências correntes; e 28 e 99 sobre as recomendações. Conclui o TC: os gabinetes ministeriais estão a usar verbas dos seus orçamentos para transferir dinheiro para outras entidades. A partir daí, perde-se o rasto.
Portanto: Jorge Lacão acusa o TC de ter feito análises sobre coisas que não podem ser analisadas... por causa das más práticas que o próprio TC critica! E quanto é? É 99% do orçamento de 12,6 mil milhões de euros de 31 gabinetes, que serve para financiar terceiros, públicos e privados, numa prática que não tem transparência nem se explica “à luz da missão dos gabinetes”, como diz o TC, que se demarca expressamente das afirmações do Governo de “trajectória de redução da despesa” nesses gabinetes.
O Governo utiliza com poder discricionários, sem necessidade de dar explicações nem revelar critérios de escolha, dinheiros que estão legitimados pelos orçamentos dos gabinetes dos seus Ministérios. É isto que o TC diz e que Jorge Lacão confirma. Só que o primeiro fica incomodado, o segundo fica ofendido.
O Governo deve ter flexibilidade na gestão de um país e dos seus orçamentos. Seria impossível decidir tudo por concurso público e convencer toda a gente de todas as contratações. Mas o “princípio da substância sobre a forma”, que a contabilidade consagra, não é álibi para o livre arbítrio. Quem tem medo da transparência fica quase sempre a perder, até porque deixa às imaginações mais férteis (como a do Bloco de Esquerda) o poder das insinuações destrutivas.
Guilherme d’Oliveira Martins não tem tentações pistoleiras mas juntou-se (quem diria?) à galeria de contra-poderes que o País está a popularizar, ao lado dos presidentes da Autoridade da Concorrência e da ASAE. Com ele, o TC passou a fazer coisas que não fazia e, sobretudo, passou a fazer coisas em tempo útil.
O Governo disse-se “apreensivo” com o Tribunal de Contas quando devia ficar apreensivo consigo mesmo e com os métodos de orçamentação opacos praticados pelo menos desde há três Executivos. Não teria ficado mal a Jorge Lacão admitir que a regra herdada está errada e que o Governo vai corrigi-la. Em vez disso, quis neutralizar as suspeitas de despesismo. Percebe-se o afã. Não se percebe a persistência. Medo da transparência?