Terça-feira, 3 de Abril de 2007
Na casa dos brinquedos
Não sabemos se os autarcas lisboetas são desonestos - e com esta polícia e estes tribunais nunca saberemos ao certo
a obsessão nacional com a corrupção é muito curiosa. segundo o índice da transparency international, a corrupção não terá em portugal a dimensão que tem na grécia ou itália. o que nunca se concluiria de ler a nossa imprensa. há por detrás da actual caça às bruxas suscitada pelo tema muita coisa. para começar, a velha superstição jacobina de que, se todos sacrificássemos os nossos interesses privados ao interesse público, a pátria estaria salva. mas há ainda isto: um modo degradado de fazer política. é o que está à vista em lisboa.
o cenário é a maior cidade do país, onde os espaços vagos - prédios abandonados, indústrias desactivadas, ou velhas quintas - abriram uma nova fronteira de expansão para a construção civil. ponha-se à frente disto tudo uma administração municipal tão caótica que, segundo o relatório da pricewaterhousecoopers relativo a 2001 (o mais impressionante documento sobre a administração pública portuguesa), lhe é impossível, mesmo que quisesse, "prevenir e detectar situações de ilegalidade". adicione-se uma legislação que, em nome de uma estrita separação entre público e privado, foi criminalizando a velha maneira nacional de fazer as coisas. e eis as condições apropriadas para, à conta das suspeitas de "corrupção", "ilegalidade" e "má gestão", uma política manhosa reduzir o governo de uma cidade a histórias de polícias e ladrões.
o que fazem os políticos em lisboa? vale a pena registar a confissão de um eleito do pcp, modesto navarro, na sessão extraordinária da assembleia municipal de 6 de fevereiro de 2007: "desde dezembro de 2003, apresentámos sucessivamente no ministério público, nos tribunais, na igat e na polícia judiciária vários processos de investigação e de intervenção de quem de direito, em especial na permuta do parque mayer-feira popular, na hasta pública dos terrenos de entrecampos, nos negócios de alcântara xxi, vale de santo antónio e boavista." e congratulava-se: "as investigações principiam a produzir efeitos. pelo menos três responsáveis da câmara nos últimos mandatos foram constituídos arguidos e outros responsáveis poderão seguir-se."
eis um partido contente com o papel menor de assistente de polícias e tribunais. mas o que distingue o pcp é apenas a sua gabarolice ingénua. os outros fizeram quase todos o mesmo, entusiasticamente rendidos ao negócio fácil das insinuações, denúncias, queixas-crime, sindicâncias, e auditorias. temos de reconhecer que foram hábeis. podem assim mostrar zelo e actividade, sem ter de produzir os resultados que a ineficiência do estado não permite, nem mobilizar a opinião que a baixa socialização política torna difícil. os custos, de resto, são baixos. a ineficiência das polícias e tribunais garante que há sempre investigações, mesmo sem provas (como no caso freeport em 2005), mas que raramente há conclusões (dos 1521 inquéritos sobre corrupção entre 2002 e 2005, só 407 foram concluídos). a "corrupção" em portugal é sobretudo um espectáculo para os jornais e televisões, em que ninguém é inocente mas também ninguém é culpado.
o resultado já foi apropriadamente descrito por um dos vereadores: é a redução do município a uma "casa de brinquedos". os partidos, destituídos de lideranças locais, estão formatados para este grau zero da política. o maior partido da direita desapareceu por detrás de técnicos independentes, sem identidade política clara (um deles serviu a aliança de esquerda antes de vir servir a da direita), e o mais pequeno partido da esquerda abdicou a favor de um especialista de embargos e providências cautelares. curiosamente, nem os tecnocratas serviram para melhorar a governação, nem a reputação do justiceiro dissuadiu alegadas tentativas de olear a máquina - sinal de que, no "meio", há o hábito de não levar a retórica anticorrupção muito a sério.
peço às viúvas e viúvos da moral jacobina o favor de não se indignarem. não estou a dizer que a investigação criminal contra subornos e compadrios não faça sentido. o meu ponto é que não é preciso o atropelo do interesse público por interesses privados para haver corrupção. essa é uma ideia moderna, e aquela que hoje mais excita a imprensa, os legisladores e a polícia. mas os autores da antiguidade clássica chamavam "corrupção à degradação da qualidade do governo, fosse qual fosse a sua origem. não sabemos se os autarcas lisboetas são desonestos - e com esta polícia e estes tribunais nunca saberemos ao certo. admito que sejam todos boas pessoas e excelentes nas suas profissões. mas são maus políticos. e isso também é uma forma de corrupção.